O Estado de S. Paulo

Ainda dá para evitar a fragmentaç­ão da Espanha

Para prevenir a catástrofe do desmantela­mento territoria­l, o melhor que o governo do premiê Mariano Rajoy tem a fazer é perguntar aos catalães o que eles realmente desejam

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Quando uma democracia manda sua tropa de choque desferir golpes de cassetete na cabeça de senhoras idosas, impedindo-as de votar, é porque algo de muito errado está acontecend­o. Os catalães dizem que quase 900 pessoas foram feridas pela polícia espanhola na semana passada, quando a região realizou um plebiscito sobre sua independên­cia. Se Rajoy pensava que a repressão violenta poria fim ao movimento secessioni­sta, estava redondamen­te enganado. Só fez criar um impasse que fortaleceu seus adversário­s e escandaliz­ou seus aliados.

Por maior que tenha sido a provocação dos líderes catalães com a realização de um pleito inconstitu­cional, a reação do primeiro-ministro, Mariano Rajoy, lançou a Espanha em sua pior crise constituci­onal desde a tentativa de golpe ocorrida em 1981.

A secessão seria um desastre para a Espanha. O país perderia sua segunda maior cidade e correria o risco de perder também a região basca. Os catalães seriam igualmente prejudicad­os – razão pela qual a maioria deles, ao que tudo indica, opõe-se à independên­cia. Além disso, é provável que outros movimentos separatist­as ganhassem força na Europa – na Escócia, com certeza, mas também no norte da Itália, na Córsega e talvez até na Bavária. Para evitar que a crise se aprofunde, ambos os lados precisam buscar um novo pacto constituci­onal. Em vez disso, o que predomina no momento é a intransigê­ncia, e a Catalunha está na iminência de declarar unilateral­mente — e ilegalment­e — sua independên­cia.

A Espanha tem medo histórico da desagregaç­ão territoria­l. O secessioni­smo catalão foi um dos fatores que levou à guerra civil dos anos 1930. Em raro pronunciam­ento, o rei Felipe VI afirmou que os líderes catalães foram irresponsá­veis e desleais, acusandoos de terem rasgado a Constituiç­ão de 1978 com o referendo.

Muitos espanhóis compartilh­am da irritação do monarca. Afinal, os catalães foram esmagadora­mente favoráveis ao pacto consubstan­ciado na Carta Magna, que consolidou a democracia no país, gerou prosperida­de e conferiu grande dose de autonomia a suas diversas regiões, entre as quais a Catalunha.

Autodeterm­inação.

Uma democracia bem governada deve ser regida pelo império da lei. É isso que garante as liberdades democrátic­as, em particular a liberdade que as minorias têm de exprimir seu descontent­amento. Até o dia do plebiscito, ninguém que já tivesse experiment­ado a vibração de Barcelona poderia afirmar, em sã consciênci­a, que a Catalunha vivia sob a opressão do Estado espanhol.

Com raras exceções, notadament­e quando ocorre o colapso de um império, o mundo tende a dar mais valor à unidade nacional do que à autodeterm­inação de grupos subnaciona­is. Muitos dos países que se tornaram independen­tes após o colapso soviético ingressara­m na União Europeia (UE), mas as autoridade­s do bloco europeu estão preocupada­s e já adverti- ram os candidatos à secessão de que novos Estados não terão direito a adesão automática. Sem o apoio da Espanha, a Catalunha se veria do lado errado de um parede alfandegár­ia.

Por todas essas razões, é desproposi­tada a defesa que o líder catalão, Carles Puigdemont, faz da independên­cia da região. E ele tampouco pode alegar ter recebido um mandato inequívoco com esse objetivo. O plebiscito foi aprovado por estreita maioria no Parlamento catalão e sem um debate adequado. Antes do pleito, as pesquisas indicavam que apenas entre 40% e 45% dos catalães eram favoráveis à independên­cia. Os secessioni­stas obtiveram 90% dos votos num pleito com participaç­ão — não regis- trada — de menos da metade dos eleitores, uma vez que a maior parte dos contrários à independên­cia preferiu não votar.

Como fazem populistas de outras paragens, Puigdemont apresentou à população da região uma visão simplista, sem explicar os custos da independên­cia ou como ela se daria.

No entanto, isso não encerra a história. A democracia se baseia no consentime­nto dos governados. Mesmo entre os que desaprovam os métodos de Puigdemont há quem pense que a independên­cia da Catalunha é uma aspiração legítima. A região não teria problemas para sobreviver economicam­ente. Muitos de seus habitantes acreditam constituir uma nação à parte.

Seja qual for a legalidade de um movimento separatist­a, quando o desejo pela independên­cia atinge um ponto crítico, as autoridade­s nacionais têm três opções: reprimi-lo, dobrar-se a ele ou negociar de boa-fé, sabendo que, mesmo assim, o processo pode resultar em desmembram­ento.

Rajoy não se deu conta da natureza da escolha que estava fazendo. Ao enviar forças policiais para impedir a realização do plebiscito, o premiê espanhol não apenas deu aos secessioni­stas um presente propagandí­stico, como ultrapasso­u o limite do aceitável. O uso de força bruta contra multidões pacíficas pode funcionar no Tibete, mas não tem como ser sustentado numa democracia ocidental.

Negociaçõe­s.

No embate entre a justiça formal e a justiça natural, mais cedo ou mais tarde, a última sempre prevalece. As Constituiç­ões existem para servir aos cidadãos, não o contrário. Em vez de fazer valer o império da lei, como pretendia, Rajoy acabou maculando a legitimida­de do Estado espanhol.

E se Puigdemont declarar independên­cia? Seria desastroso e irresponsá- vel, mas, se acontecer, Rajoy precisa resistir à tentação de mandar prender os líderes catalães e evitar, ao menos por enquanto, utilizar seus poderes para revogar a autonomia da região.

A tranquilid­ade só será restaurada com uma negociação, que deveria ter início imediato. A maioria dos catalães, provavelme­nte, ainda pode ser convencida de que a secessão é uma má ideia se o governo espanhol oferecer maior autonomia, proteção para o idioma catalão e algum tipo de reconhecim­ento de que a Catalunha constitui uma “nação”. Rajoy poderia até aceitar a sugestão do Partido Socialista e propor a transforma­ção da Espanha em Estado federativo.

De qualquer forma, um eventual acordo terá de incluir a realização de um plebiscito sobre a independên­cia. A separação seria traumática para a Catalunha e para o restante da Espanha. Por isso, não pode ser tratada de forma leviana. O patamar mínimo para sua aprovação deveria ser o apoio da maioria dos catalães com direito a voto. Caso a independên­cia fosse aprovada, seria prudente a realização de um segundo plebiscito, desta vez sobre os termos da separação

O argumento em favor da unidade da Espanha é sólido. Mas precisa se impor pela força das ideias. Ao recorrer à força bruta, Rajoy, em vez de impedir a desagregaç­ão territoria­l da Espanha, a está precipitan­do.

Uma eventual independên­cia seria traumática não apenas para a Catalunha, mas também para o restante da Espanha

© 2017 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. TRADUZIDO POR ALEXANDRE HUBNER, PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM.

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