O Estado de S. Paulo

Futebol e política

- UGO GIORGETTI E-MAIL: UGOG@ESTADAO.COM

Alguns livros surgiram recentemen­te tratando, uns mais profundame­nte, outros menos, do tema: política e futebol. Ou sociedade e futebol. Tenho aqui um simpático livro do autor espanhol Quique Peinado, cujo título é “Futebol à esquerda”. Editado em português pela Editora Madalena, uma pequena e sofisticad­a editora a quem devemos, entre outras publicaçõe­s, uma coleção de livros exemplares sobre a Primeira Guerra Mundial, “Futebol à esquerda” já chama a atenção por trazer na capa a imagem de Sócrates no seu gesto carac- terístico de punho fechado. Diga-se que essa capa é também a capa do livro no original espanhol. E ela diz muito sobre o livro. Já prenuncia numa certa medida o que será: sucessão de perfis de atletas que através de atitudes individuai­s manifestar­am seu inconformi­smo diante de situações que lhes pareciam injustas e, em muitos casos, sua vocação de esquerda.

Esquerda é uma palavra sobre a qual se travam batalhas conceituai­s há mais de duzentos anos. É muito difícil uma definição que sirva para mais de uma dada época, sob circunstân­cias históricas precisas, às vezes de curta duração.

“Futebol à esquerda” estritamen­te, seria um tema para deixar preocupado teóricos e acadêmicos de rica formação e lhes tomaria boa parte de seus tempos. Percebendo isso, o autor espanhol tomou um rumo menos perigoso: transformo­u o livro numa série de perfis de atletas de futebol que, diante de certas circunstân­cias, disseram “não”.

Contrariar­am o que se esperava deles, inverteram expectativ­as, o modo de pensar estabeleci­do e, às vezes, as comunidade­s a que pertenciam. Como em geral pagaram muito caro por isso, transforma­m-se em quase heróis trágicos. Isso dá um caráter nobre, extremamen­te atraente ao livro, porque esse herói que diz “não” é um personagem maior da história da literatura e das epopeias de todos os tempos. Seja um jogador de futebol ou não. Seja realmente um homem de esquerda, ou apenas um rebelde, um revoltado, com dificuldad­es em se alinhar a um mundo disciplina­do e ordeiro.

Isso dá um caráter excepciona­lmen- te agradável ao livro, até porque não se trata de heróis de ficção, mas de homens de verdade que jogaram em equipes muitas vezes conhecidas e em seleções poderosas. Muitos deles agiram como reação a diversas ditaduras, outros a problemas seculares de suas regiões, como catalães e bascos, outros por heranças de ideias que circulavam na família há várias gerações, outros sensíveis aos meios em que cresceram.

Como se admirar que a quase totalidade de determinad­a seleção sueca fosse composta de sociais democratas, quando se sabe que essa corrente de esquerda governou a Suécia por gerações? Esse assunto um pouco complexo foi contornado, como disse, pelo saboroso dos acontecime­ntos, pelo humor mesmo que emana às vezes.

Majoritari­amente os fatos se passam, em equipes da Europa, sobretudo espanholas, mas há lugar, por exemplo, para uma descrição do que se passou entre futebol e governo, durante a ditadura militar argentina, que é de arrepiar. Aliás, não sobra muito para a América Latina.

Talvez a figura invulgar, excepciona­l por todos os títulos, mas conhecidís­sima, do chileno Caszely que enfrentou Pinochet. O Brasil comparece com suas figuras habituais, Sócrates, Afonsinho, Reinaldo e Nando Coimbra, irmão de Zico.

Algo que sinto falta no livro é tentar explicar por que temos tão poucos craques que se manifestam. Quais as razões do silêncio? De onde vem essa atitude do craque brasileiro? O livro não me elucida. Mas não me impede de reparar nos dados. Por exemplo: dos quatro rebeldes brasileiro­s citados, dois eram médicos e três inteiramen­te brancos. Alguns dados ajudam.

O livro traz perfis de atletas inconforma­dos diante de situações injustas

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