Futebol e política
Alguns livros surgiram recentemente tratando, uns mais profundamente, outros menos, do tema: política e futebol. Ou sociedade e futebol. Tenho aqui um simpático livro do autor espanhol Quique Peinado, cujo título é “Futebol à esquerda”. Editado em português pela Editora Madalena, uma pequena e sofisticada editora a quem devemos, entre outras publicações, uma coleção de livros exemplares sobre a Primeira Guerra Mundial, “Futebol à esquerda” já chama a atenção por trazer na capa a imagem de Sócrates no seu gesto carac- terístico de punho fechado. Diga-se que essa capa é também a capa do livro no original espanhol. E ela diz muito sobre o livro. Já prenuncia numa certa medida o que será: sucessão de perfis de atletas que através de atitudes individuais manifestaram seu inconformismo diante de situações que lhes pareciam injustas e, em muitos casos, sua vocação de esquerda.
Esquerda é uma palavra sobre a qual se travam batalhas conceituais há mais de duzentos anos. É muito difícil uma definição que sirva para mais de uma dada época, sob circunstâncias históricas precisas, às vezes de curta duração.
“Futebol à esquerda” estritamente, seria um tema para deixar preocupado teóricos e acadêmicos de rica formação e lhes tomaria boa parte de seus tempos. Percebendo isso, o autor espanhol tomou um rumo menos perigoso: transformou o livro numa série de perfis de atletas de futebol que, diante de certas circunstâncias, disseram “não”.
Contrariaram o que se esperava deles, inverteram expectativas, o modo de pensar estabelecido e, às vezes, as comunidades a que pertenciam. Como em geral pagaram muito caro por isso, transformam-se em quase heróis trágicos. Isso dá um caráter nobre, extremamente atraente ao livro, porque esse herói que diz “não” é um personagem maior da história da literatura e das epopeias de todos os tempos. Seja um jogador de futebol ou não. Seja realmente um homem de esquerda, ou apenas um rebelde, um revoltado, com dificuldades em se alinhar a um mundo disciplinado e ordeiro.
Isso dá um caráter excepcionalmen- te agradável ao livro, até porque não se trata de heróis de ficção, mas de homens de verdade que jogaram em equipes muitas vezes conhecidas e em seleções poderosas. Muitos deles agiram como reação a diversas ditaduras, outros a problemas seculares de suas regiões, como catalães e bascos, outros por heranças de ideias que circulavam na família há várias gerações, outros sensíveis aos meios em que cresceram.
Como se admirar que a quase totalidade de determinada seleção sueca fosse composta de sociais democratas, quando se sabe que essa corrente de esquerda governou a Suécia por gerações? Esse assunto um pouco complexo foi contornado, como disse, pelo saboroso dos acontecimentos, pelo humor mesmo que emana às vezes.
Majoritariamente os fatos se passam, em equipes da Europa, sobretudo espanholas, mas há lugar, por exemplo, para uma descrição do que se passou entre futebol e governo, durante a ditadura militar argentina, que é de arrepiar. Aliás, não sobra muito para a América Latina.
Talvez a figura invulgar, excepcional por todos os títulos, mas conhecidíssima, do chileno Caszely que enfrentou Pinochet. O Brasil comparece com suas figuras habituais, Sócrates, Afonsinho, Reinaldo e Nando Coimbra, irmão de Zico.
Algo que sinto falta no livro é tentar explicar por que temos tão poucos craques que se manifestam. Quais as razões do silêncio? De onde vem essa atitude do craque brasileiro? O livro não me elucida. Mas não me impede de reparar nos dados. Por exemplo: dos quatro rebeldes brasileiros citados, dois eram médicos e três inteiramente brancos. Alguns dados ajudam.
O livro traz perfis de atletas inconformados diante de situações injustas