O Estado de S. Paulo

A vida não é curta

- RUTH MANUS E-MAIL: RUTH.MANUS@ESTADAO.COM RUTH MANUS ESCREVE AOS DOMINGOS

Ouve-se frequentem­ente que a vida é curta. E, de fato, por vezes me assombro com o tempo que passa pelas nossas costas, sorrateiro e sem aviso, adiantando-se sem qualquer permissão para tanto. Há momentos em que estamos num belo dia de janeiro e na semana seguinte novembro já se aproxima com luzes natalinas e propaganda­s de panetone. Mas trata-se de algo realmente estranho, porque, na verdade, a vida nem sempre parece curta. Às vezes, a vida parece absolutame­nte intermináv­el. Na fila do banco. Na espera da chegada das férias. Na espera do fim das férias das crianças. Nos 30 minutos que as pessoas com hipotireoi­dismo têm que esperar todo dia entre tomar o remédio e poder tomar o café da manhã.

No fundo, acho que a vida não é propriamen­te curta. Mas percebi que acho que os intervalos são excessivam­ente breves. Explico-me. Tenho 29 anos, mas já sinto que o tempo virou. Sinto que a vida indelicada­mente já me jogou para um tal de “outro lado” em dezenas de situações. E foi muito, mui- to curto o intervalo entre estar de um lado e ser arrastada para o outro.

Foi excessivam­ente breve o tempo que transcorre­u entre eu deixar todas as luzes da casa acesas, ouvindo broncas dos meus pais e eu passar a chamar a atenção da minha enteada pela mesmíssima razão. Meu marido faz igual. E eu penso com estranheza que até outro dia eu era a filha das luzes acesas e de repente já sou essa figura híbrida, que por vezes reclama com a miúda por causa disso e por vezes sur- preende-se com o fato de já ser casada com um homem que discursa exatamente como meu pai.

Foi muito curto o intervalo entre eu achar minha tia chata por abaixar o volume do rádio do carro dela, quando eu entrava colocando a Christina Aguilera para berrar nos 4 alto falantes, e eu, tão pouco tempo depois, me flagrar abaixando o volume do rádio do meu carro quando minha sobrinha adolescent­e coloca a Taylor Swift para fazer o mesmo. E o pior: foi breve o intervalo entre minha tia perder a paciência e substituir a Christina Aguilera no volume 38 pelo Elton John no volume 26 e eu substituir a Taylor Swift no volume 38 pelo Michael Bublé no volume 26.

Foi breve o intervalo entre ter uma certa pena dos meus pais, quando os via ficar em casa no sábado à noite, sem nenhum programa noturno, e ser tomada pela deliciosa sensação de ficar em casa nas mesmas condições, sem absolutame­nte nenhum jantar, festa de aniversári­o ou balada começando à meia-noite. Foi muito rápido o tempo que transcorre­u entre enxergar felicidade nas noites estendidas até as 5 da manhã com vodca e Fanta laranja e, logo depois, num spaghetti com vinho tinto às 21, seguido de sofá às 22.

Foi curto, realmente curtíssimo, o intervalo entre julgar os pais que deixam suas crianças mexerem em seus celulares em mesas de restaurant­e e me ver pedindo socorro ao YouTube, ao aplicativo da Barbie, ao aplicativo do sapo ou a qualquer outro artifício tecnológic­o que nos permita acabar de comer o prato que já esfriou e poder trocar de seis a oito frases entre o casal sem interrupçõ­es.

Foi breve o período que passou entre condenar os “sapatos confortáve­is” que minha mãe comprava e o dia em que procurei um mocassim clássico e confortáve­l para trabalhar, para o horror da minha sobrinha mais velha que dizia “Tia Ruth, leva pelo menos esse que é baixinho, mas não é tão feio”, apontando para um mocassim jovem no qual letras douradas diziam HEY num pé e LOVE no outro. Não, Rita, quero esse mesmo, bege, simples, sem graça.

Foram intervalos assim: eu pisquei e eles passaram. Talvez por isso, às vezes eu me julgue velha antes dos 30, já tenha algum medo do tempo e seja assombrada pela ideia de que a vida parece curta. Curta não é. Dura o quanto tem que durar. Mas os intervalos, esses, de fato, são curtos demais.

Por vezes me assombro com o tempo que passa pelas nossas costas, sorrateiro e sem aviso

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