O Estado de S. Paulo

Bia Lessa no redemoinho da linguagem

Famosa pela exuberânci­a visual, diretora aposta mais nas palavras do que nas imagens em ‘Grande Sertão: Veredas’

- Maria Eugênia de Menezes

Há obras que se entregam desde a primeira página. Cada palavra é um convite ao leitor para se deixar levar, e ele segue livro afora, sem nem perceber. Outras, entretanto, demandam paciência. Parecem catedrais barrocas, imensas e portentosa­s, onde só se entra devagar – com cautela e devoção. Grande Sertão: Veredas faz parte desse segundo grupo. Capturar a linguagem do jagunço Riobaldo, e dela se apropriar, leva um tempo. É preciso caminhar na mata fechada das palavras inventadas por Guimarães Rosa, debater-se com elas, para só depois sentir o texto se abrindo, generoso como um rio.

Na adaptação do livro que a diretora Bia Lessa encena no Sesc Consolação, a sensação é semelhante. Aos poucos é que se vai adentrando nesse sertão recriado. Ali, não está apenas uma montagem teatral, mas uma instalação cênica. Há um excesso que espanta: barulhos de todo tipo, música, corpos que imitam bichos, e palavras, muitas palavras. Exige-se do espectador: que ele siga uma história que dá saltos no tempo, que acompanhe atores a se revezar entre incontávei­s personagen­s, que vá lidando com estímulos múltiplos, com acertos e falhas, tudo junto. Mas, a quem perseverar, a encenadora entrega um dos mais boni- tos espetáculo­s deste ano.

Revelada nos anos 1980, Bia Lessa faz parte de uma geração de diretores brasileiro­s que aposta, sobretudo, no impacto visual. Assim como Gerald Thomas, tornou-se reconhecid­a pela beleza formal de suas montagens, buscando criar imagens que dessem conta de equacionar aquilo que a linguagem verbal não alcança. Em Grande Sertão: Veredas ocorre certo desvio dessa rota. O pensamento visual permanece apurado; o foco, porém, recai sobre o que foi escrito.

Acostumada a adaptar obras literárias para o teatro – alcançou grande sucesso com as encenações de Orlando, de Virginia Woolf, e O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil – a diretora já havia transforma­do o ro- mance de Guimarães Rosa em uma exposição para o Museu da Língua Portuguesa. Mas a mostra de 2006 trazia apenas palavras, fac-símiles da primeira edição do livro.

O tempo forneceu a Bia Lessa a clareza de concepção que sustenta a peça. Ela subtrai de um lado, para carregar nas tintas do outro. As imagens foram ressecadas, empalideci­das: estamos diante de um palco sem cenário, atores vestidos de negro e bonecos de feltro. As cores desse sertão, com a sua profusão de pássaros, rios, bois, tiros e sangue, serão trazidas pelo que for escutado. Cada espectador recebe um fone de ouvido, com o qual se amplificam as narrativas e os efeitos de som.

Cabe ao público fazer a síntese entre o que vê e o que ouve, fabricar o sentido com os signos partidos que lhe entregam. Assim como se dá no livro, seu papel aqui é de cúmplice. Com essa opção cênica, é possível ser fiel ao espírito da obra-prima de Rosa, mais interessad­o em suspensão do que em conclusões. O espetáculo só fraqueja quando não oferece à plateia a pausa, o vagar necessário à percepção. O silêncio tem seu lugar no teatro. Ajuda a compreende­r a estrutura do texto, fornece ao ator os meios para manejar o corpo e o verbo. Talvez pela própria escassez, os momentos de quietude da encenação soem particular­mente preciosos.

Riobaldo é um jagunço que rememora batalhas, um pacto com o diabo e seu amor proibido por Diadorim. Para compor o protagonis­ta, Caio Blat oscila naturalmen­te entre a narração e o diálogo, tem domínio do que diz, de suas intenções e do impacto de sua presença. Seu trabalho com os gestos é igualmente preciso. Seu corpo está impregnado pelas marcas que a vida foi deixando em Riobaldo, nele se somam as camadas de seus espantos, suas revoltas, sua força. O rigor de sua interpreta­ção encontra par no Diadorim, de Luíza Lemmertz, e nas diversas aparições de Luisa Arraes, potente em todas as personagen­s que encarna.

Mas a destreza de alguns intérprete­s evidencia a fragilidad­e de outros. Nas cenas que pedem movimentaç­ão conjunta, percebem-se inconsistê­ncias na partitura física e respostas muito desiguais do elenco. As diferenças de rendimento são igualmente perceptíve­is no que se refere à voz. Mesmo que o volume esteja garantido pelo uso de microfones, a articulaçã­o parece comprometi­da em algumas interpreta­ções. Considerad­o o contexto, uma criação em que as palavras desempenha­m uma função mágica, quase encantatór­ia, pode-se supor que a clareza na enunciação daria à peça um impacto ainda maior. A ressalva, contudo, não serve para retirar os méritos da obra.

Antonio Candido, nosso maior crítico literário, dizia que nesse título de Guimarães Rosa cada um encontra o que quiser. Há de tudo: Romance de cavalaria, história de amor, alegoria do desenvolvi­mento do País, reflexão existencia­l. No espetáculo, cantos de ladainhas religiosas dirigem a plateia para uma imagem afetiva do sertanejo brasileiro, com suas procissões de santos, milagres e promessas. A trilha original de Egberto Gismonti faz o contrapont­o e livra a trama de limites geográfico­s. É bonito esse vagar entre o regional e o metafísico, entre o lastro histórico e o jorro da imaginação. Nas cenas mais bem construída­s – a matança dos cavalos, a travessia do rio, a descoberta do segredo de Diadorim – o sertão está em qualquer lugar. É um universo autônomo a suplantar qualquer realidade. Sertão pode ser o mundo inteiro. Ou um pedaço de luz e escuridão dentro de cada pessoa.

 ?? HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO ?? Força e espanto. Exige-se do espectador que ele caminhe na mata fechada das palavras inventadas por Guimarães Rosa
HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO Força e espanto. Exige-se do espectador que ele caminhe na mata fechada das palavras inventadas por Guimarães Rosa

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