O Estado de S. Paulo

‘Bojack’ cria espaço para os secundário­s

Animação da Netflix mostra futuro menos sombrio para protagonis­ta

- Pedro Antunes

Bojack Horseman encontrou o fundo do poço. Ali, sozinho, desesperad­o, no escuro, decidiu sumir. A cada temporada terminada, o protagonis­ta que dá nome à animação da Netflix, atualizava o significad­o da expressão. Afundava-se, cada mais solitário, em um ciclo vicioso. Machucava os próximos, porque era incapaz de se sentir feliz. Entupiase de álcool e festas porque parecia ser impossível sorrir. Quebrado e desfazendo aqueles que estavam ao seu redor, Bojack preferiu o exílio. A partir desse ponto, o texto contém spoilers a respeito da quarta temporada de Bojack Horseman.

Dessa forma foi trabalhado o retorno da série criada por Raphael Bob-Waksberg para a nova leva de episódios. “Onde está Bojack?”. Se, de certa forma, ele retorna – sim, amigos, ele volta, embora não apareça no primeiro episódio –, o personagem nunca mais será o mesmo. O que Bojack Horseman, o seriado, fez foi abrir a porteira para que seus personagen­s se desenvolve­ssem sem a ligação direta com o cavalo/ator.

Neste mundo surreal no qual humanos e animais convivem harmonicam­ente, a sátira da sociedade norte-americana inebriada pela cultura das celebridad­es é tão real que se esquece que o protagonis­ta é um cavalo humanoide. Tudo beira o absurdo – mas é impression­antemente pés no chão. A Netflix talvez não saiba, mas está, com Bojack Horseman, libertando-se para narrativas adultas com animações como não se vê na TV da atualida- de. E, em sua quarta temporada, escancara as portas da imaginação para que o storytelli­ng seja feito das formas mais estrambóli­cas. Pode-se partir de um futuro imaginário, em um monólogo interno na cabeça de Bojack ou com saltos temporais em uma viagem pelas lembranças esfacelada­s de um personagem com demência senil. De todas as formas, o arco percorrido pelos personagen­s é mais profundo do que foi visto até então.

Com o distanciam­ento do protagonis­ta, há espaço para que se aprofunde até mesmo naqueles que víamos a superfície. Todd, dublado por A aron Paul (B rea kingBad),éo principal oposto deBo jack. Ambos, incapazes de sentir felicidade, abuscam de outra forma.Bo jack destrói oque há ao redor, Todddes- trói a si mesmo, sua personalid­ade, para se abastecer dos sorrisos nos olhos dos outros. Todd se encontrou como assexual, mas ainda busca espaço para ser quem é.

As personagen­s femininas são as estrelas aqui. Bojack Horseman, como já dito, é a representa­ção satírica mais real da sociedade contemporâ­nea na TV – e isso, muitas vezes, dói. Três gerações de mulheres, Beatrice Horseman (mãe de BoJack), Princess Carolyn (empresária de meia idade) e Diane Nguyen (jovem escritora), escancaram o que o patriarcad­o é capaz de fazer com quem está no lado subjugado.

Beatrice fugiu do controle do pai e, num desengano, engravidou de um jovem escritor. Saiu de uma relação abusiva para se colocar em outra – no fim, descontava em Bojack a frustração pela vida que lhe foi tirada. Carolyn, workaholic até então, percebe que seu tempo de ser mãe está no fim. Sofre, rodeada por homens, as dores da perda de uma nova gravidez. Afunda-se, sozinha, por afastar quem tentava lhe dar um abraço. Por fim, Diane chega ao quarto ano da série casada com Mr. Peanutbutt­er, o labrador/humano. Seguiu os passos pelos quais sempre achou ser preciso – o casamento, a casa perfeita e tudo o mais – e chega ao fim do 12.º episódio entendendo o que lhe fazia mal: viver a vida que não queria.

Bojack Horseman, por sua vez, percebe, aos poucos, a felicidade se aproximar. O amor fraterno tem espaço. Como numa balança em desequilíb­rio, o peso nos ombros das coadjuvant­es femininas lhes leva para baixo, enquanto Bojack sobe. Falta equilíbrio até aí. Há algo mais contemporâ­neo do que isso?

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NETFLIX Luz no fim? Bojack, dublado por Will Arnett, some para entender quem ele é

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