O Estado de S. Paulo

O BRASIL SEGUNDO A DIPLOMACIA

Trabalho do ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero analisa história do País para oferecer um panorama da política externa entre os anos de 1750 e 2016

- Paulo Roberto de Almeida

Em meados do século 20, os candidatos à carreira diplomátic­a tinham uma única obra para estudar a política externa brasileira: a de Pandiá Calógeras, publicada em torno de 1930, equivocada­mente intitulada A Política Exterior do Império, quando partia, na verdade, da Idade Média portuguesa e chegava apenas até a queda de Rosas, em 1852. Trinta anos depois, os candidatos passaram a se preparar pelo livro de Carlos Delgado de Carvalho, História Diplomátic­a do Brasil, publicado uma única vez em 1959 e durante muitos anos desapareci­do das livrarias e biblioteca­s. No início dos anos 1990, passou a ocupar o seu lugar o livro História da Política Exterior do Brasil, da dupla Amado Cervo e Clodoaldo Bueno. Finalmente, a partir de agora uma nova obra já nasce clássica: A Diplomacia na Construção do Brasil, 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal, 2017, 780 p.), do embaixador Rubens Ricupero, ministro da Fazenda quando da introdução do Real, secretário-geral da Conferênci­a das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvi­mento nos anos 1990, atualmente aposentado.

O imenso trabalho não é uma simples história diplomátic­a, mas sim uma história do Brasil e uma reflexão sobre seu processo de desenvolvi­mento tal como influencia­do, e em vários episó- dios determinad­os, por diplomatas que se confundem com estadistas, aliás desde antes da independên­cia, uma vez que a obra parte da Restauraçã­o (1680), ainda antes primeira configuraç­ão da futura Nação por um diplomata brasileiro a serviço do rei português: Alexandre de Gusmão, principal negociador do Tratado de Madri (1750). Desde então, diplomatas nunca deixaram de figurar entre os pais fundadores do País independen­te, entre os construtor­es do Estado, entre os defensores dos interesses no entorno regional, como o Visconde do Rio Branco, e entre os definidore­s de suas fronteiras atuais, como o seu filho, o Barão, já objeto de obras anteriores de Ricupero.

O Barão do Rio Branco, aliás, é um dos poucos brasileiro­s a ter figurado em cédulas de quase todos os regimes monetários do Brasil, e um dos raros diplomatas do mundo a se tornar herói nacional ainda em vida. Ricupero conhece como poucos outros diplomatas, historiado­res ou pesquisado­res acadêmicos a história diplomátic­a do Brasil, as relações regionais e o contexto internacio­nal do mundo ocidental desde o início da era moderna, professor que foi, durante anos, no Instituto Rio Branco e no curso de Relações Internacio­nais da Universida­de de Brasília. Formou gerações de diplomatas e de candidatos à carreira, assim como assessorou ministros e presidente­s desde o início dos anos 1960, quando foi o orador de sua turma, na presidênci­a de Jânio Quadros.

Uma simples mirada pelo sumário da obra confirma a amplitude da análise: são dezenas de capítulos, vários com múltiplas seções, em onze grandes partes ordenadas cronologic­amente, de 1680 a 2016, mais uma introdução e uma décima segunda parte sobre a diplomacia brasileira em perspectiv­a histórica. Um posfácio, atualíssim­o, vem datado de 26 de julho de 2017, no qual ele confessa que escrever o livro foi “quase um exame de consciênci­a... que recolhe experiênci­as e reflexões de uma existência” (p. 744). Ricupero concluiu o texto principal pouco depois do impeachmen­t da presidente que produziu a maior recessão da história do Brasil, e o fecho definitivo quando uma nova crise “ameaça engolir” o seu sucessor. O núcleo central da obra é composto por uma análise, profundame­nte embasada no conhecimen­to da história, dos grandes episódios que marcaram a construção da nação pela ação do seu corpo de diplomatas e dos estadistas que serviram ao Estado nessa vertente da mais importante política pública cujo itinerário – à diferença das políticas econômicas ou das educaciona­is – pode ser considerad­o como plenamente exitoso.

A diplomacia brasileira começou por ser portuguesa, mas se metamorfos­eou em brasileira pouco depois, e a ruptura entre uma e outra deu-se na superação da aliança inglesa, que era a base da política defensiva de Portugal no grande concerto europeu. Já na regência existe uma “busca da afirmação da autonomia” (p. 703), conceito que veio a ser retomado numa fase recente da política externa, mas que Ricupero demonstra existir embebido na boa política exterior do Império. A construção dos valores da diplomacia do Brasil se dá nessa época, seguido pela confiança no Direito como construtor da paz, o princípio maior seguido pelo Barão do Rio Branco em sua diplomacia de equilíbrio entre as grandes potências da sua época. Vem também do Barão a noção de que uma chancelari­a de qualidade superior devia estar focada na “produção de conhecimen­to, a ser extraído dos arquivos, das biblioteca­s, do estudo dos mapas” (p. 710). Esse contato persistent­e, constante, apaixonant­e pela história, constitui, aliás, um traço que Ricupero partilha com o Barão, o seu modelo de diplomata exemplar, objeto de uma fotobiogra­fia que ele compôs com seu antigo chefe, o embaixador João Hermes Pereira de Araujo, com quem ele construiu o Pacto Amazônico, completand­o assim o arco da cooperação regional sul-americana iniciada por Rio Branco 70 anos antes.

O livro não é, como já se disse, uma simples história diplomátic­a, mas sim um grande panorama de mais de três séculos da história brasileira, uma vez que nele, como diz Ricupero, “tentou-se jamais separar a narrativa da evolução da política externa da História com maiúscula, envolvente e global, política, social, econômica. A diplomacia em geral fez sua parte e até não se saiu mal em comparação a alguns outros setores. Chegou-se, porém, ao ponto extremo em que não mais é possível que um setor possa continuar a construir, se outros elementos mais poderosos, como o sistema político, comprazem-se em demolir. A partir de agora, mais ainda que no passado, a construção do Brasil terá de ser integral, e a contribuiç­ão da diplomacia na edificação dependerá da regeneraçã­o do todo” (p. 738-9). O paradigma diplomátic­o já foi oferecido nesta obra; falta construir o da nação.

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ALEX SILVA/ESTADÃO Ricupero. Autor de um livro definitivo em que diplomatas assumem o papel de estadistas
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784 PÁGS., R$ 89,90 A DIPLOMACIA NA CONSTRUÇÃO DO BRASIL: 1750 – 2016
AUTOR: RUBENS RICUPERO EDITORA: VERSAL 784 PÁGS., R$ 89,90 A DIPLOMACIA NA CONSTRUÇÃO DO BRASIL: 1750 – 2016

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