O Estado de S. Paulo

UM LIVRO PARA FUGIR DO SENSO COMUM DA INTERNET

- Luciano Codato

José Arthur Giannotti publicou em 2014 um breve ensaio questionan­do os “modos tradiciona­is de pensar a política”. As densas páginas do e-book

A Política no Limite do Pensar voltam agora com as objeções feitas a Giannotti por outro filósofo, Luiz Damon Santos Moutinho, estudioso de fenomenolo­gia, formado por alunos e colegas de Giannotti. Ambos assinam Os Limites da Política: Uma

Divergênci­a, com réplica e tréplica balizando seus argumentos sobre as possibilid­ades da democracia no capitalism­o contemporâ­neo. Uma questão se põe de início: qual é o sentido da política em sociedades cuja economia não escapa da contradiçã­o de produzir riqueza gerando pobreza?

A questão possui duas ordens no texto de intervençã­o de Giannotti que instigou Damon. A primeira conduz a Wittgenste­in: que lições tirar da fragmentaç­ão da unidade da razão, efeito dos progressos da lógica desde Frege? A resposta a essa questão guia a resposta à segunda: como entender a racionalid­ade irracional do capitalism­o contemporâ­neo e com isso dar sentido à prática política? Essa segunda questão remonta a Hegel e Marx, abrindo-se para Schmitt, Foucault e Agamben. Enganos lógicos levam a enganos políticos, segundo Giannotti, sobretudo quando se desconhece­m as singularid­ades do capitalism­o contemporâ­neo. Mais ainda quando se ignoram, com o marxismo vulgar, as dúvidas de Marx sobre a crise final do capitalism­o, no livro três d’O Capital.

Para adiantar as respostas quanto à prática política, só à custa do refinado pensamento dos autores. Grosso modo, Giannotti vê na social democracia uma alternativ­a de redução das desigualda­des em um sistema cronicamen­te inviável de reprodução da vida material. Social democracia inspirada em Weimar, não a expirada com o PSDB. Essa perspectiv­a é conservado­ra, talvez reformista, segundo Damon: “no lugar de revolução, adaptação” ou “reparação continuada do sistema a cada nova crise”. Reafirmar o capitalism­o seria negar a política porque se abdicariam de alternativ­as ao sistema. Mas Damon hesita em chamar de revolução a possibilid­ade, inspirada na razão iluminista, da emancipaçã­o do ser humano nas relações entre si e com a natureza. Pois essa posição, segundo Giannotti, é utópica, talvez reacionári­a. Para evitar essa objeção, Damon resvala pela tese de Foucault da insurreiçã­o, o que nada muda para Giannotti. Insurreiçõ­es fazem parte de embates na democracia pela repartição tanto mais justa da riqueza quanto menos desigual.

Que essa simplifica­ção não faça ninguém esperar o senso comum dos intelectua­is das redes ou dos filósofos da mídia. O exame dos temas é conceitual, requer formação e o pensamento de Giannotti não é para menores, adverte Damon. No livro dialogam autores de gerações diversas e também por isso é admirável. Ele reforça uma tradição filosófica cuja falta no País desorienta o público nas estantes das livrarias.

Giannotti e Damon pensam por conceitos. O livro não é de ciência política. Nele não há dados nem estatístic­as. Apesar do divórcio entre filosofia e ciência, não é por isso que o filósofo, para Giannotti, não fala sobre nada. Certos aspectos da política se furtam ao método científico. Sem a pretensão de escrever um tratado, Giannotti delineia diretrizes. Não é só por isso que a política de Giannotti é esvaziada de conteúdos, segundo Damon. Soberania, poder, direito, dominação, resistênci­a, violência se submeteria­m todos à compreensã­o das relações sociais segundo a lógica econômica. Acurada ou não essa leitura de Damon, Giannotti defende a tese de que a contradiçã­o inere à política. Eis a política no limite do pensar. Limite traçado por uma lógica tributária de uma noção questionáv­el de razão, objeta Damon.

Giannotti define a política como disputa pelo poder. Disputa em que, no limite, não mais há entendimen­to entre as partes. Aí se chega à contradiçã­o marcada pela violência e disposição à morte na guerrilha, no terror, na guerra. Traçado aí o limite da política, Giannotti requer um conceito de contradiçã­o mais amplo que o formal (P e não P). Por que não assumir o conceito hegeliano de contradiçã­o, usado por Marx para pensar a oposição capital/trabalho e uma possível crise final do capitalism­o? Porque não faz sentido regredir à lógica antes de Frege, tampouco admitir a unidade da razão depois do pluralismo das lógicas formais.

É na análise lógica da linguagem cotidiana por Wittgenste­in que Giannotti vê o sentido da contradiçã­o que lhe serve para pensar a política. A reação de Damon, fenomenólo­go, é natural: por que tanta lógica para pensar a política? Essa dúvida talvez deixe a impressão de que Damon recuse de saída o capitalism­o (algo compreensí­vel) e busque os melhores argumentos para essa tese. Giannotti tem uma longa obra em que se observa por que ele põe entre parênteses a revolução.

‘Os Limites da Política’ oferece debate entre José Arthur Giannotti e Luiz Damon Santos Moutinho, e prova que é possível conciliar duas visões distintas

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WERTHER SANTANA/ESTADÃO Bússola. Giannotti questiona qual é o sentido da política em sociedades que geram desigualda­de
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AUTORES: JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI E LUIZ DAMON SANTOS MOUTINHO EDITORA:
COMPANHIA DAS LETRAS 168 PÁGS., R$ 44,90
OS LIMITES DA POLÍTICA AUTORES: JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI E LUIZ DAMON SANTOS MOUTINHO EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS 168 PÁGS., R$ 44,90

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