O Estado de S. Paulo

UM FILME NO CENTENÁRIO DE ANTONIO CALLADO

- Sérgio Augusto

Antes eram seus livros que iam parar nas telas de cinema. Agora são eles próprios, com suas vidas e seus livros. Documentár­ios sobre escritores, ora em alta no mercado, denotam não propriamen­te uma nova, mas uma insistente tendência do cinema de não ficção. Quatro dos mais esperados documentár­ios do Festival de Cinema de Nova York, iniciado esta semana, focalizam a figura de um escritor ou um jornalista. Na mostra em curso no Rio há três dias, o representa­nte desse subgênero é um perfil do jornalista e escritor Antonio Callado (1917-1997), dirigido por Emília Silveira.

Cinco anos atrás, Grant Gee recriou a caminhada de W.G. Sebald em Os Anéis de Saturno. No mesmo ano (2014) em que Nancy Kates fez o retrato filmado de Susan Sontag ( Regarding Susan Sontag), Martin Scorsese e David Tedeschi concentrar­am em 97 minutos a trajetória da cinquenten­ária revista literária The New York Review of Books, em The 50 Year Argument. No ano seguinte, Jacob Bernstein e Nick Hooker, dois admiradore­s da escritora, jornalista, roteirista e diretora de comédias Nora Ephron (1941-2012), homenagear­am-na com uma celebração produzida pelo HBO, Everything is Copy, farta em depoimento­s pessoais (Ephron não recusava um talk show) e de parceiros como Tom Hanks, Steven Spielberg, Meg Ryan, Rob Reiner, afinal premiada com um Emmy.

Cedendo o mínimo necessário ao esquematis­mo reinante nos documentár­ios biográfico­s, com talking heads revezando-se na explicação e na exaltação do biografado, e fiando-se mais na força das palavras de James Baldwin para construir uma narrativa do racismo na América, Raoul Peck explorou caminho diferente em Não Sou Seu Negro, surpreende­nte êxito de bilheteria no início deste ano. Emília Silveira aprendeu a lição. Nos depoimento­s de Callado, exibido ontem na mostra do Rio, com nova sessão terça-feira (às 18h, no teatro do BNDES), ouvimos apenas as vozes dos entrevista­dos.

O dramaturgo Arthur Miller, a ensaísta, repórter e romancista Joan Didion e os jornalista­s Gay Talese e Edward Jay Epstein são os criadores em foco no Festival de Nova York. Arthur Miller: Writer, dirigido pela filha do dramaturgo, Rebecca Miller, é um registro do relacionam­ento entre os dois, apoiado em filmes e papos caseiros. Também familiar é Joan Didion: The Center Will Not Hold, assinado pelo ator Griffin Dunne (o perdido na noite de Depois de Horas), sobrinho de Joan. Voyeur, de Myles Kane, não versa propriamen­te sobre a vida e carreira de Talese, mas sobre o processo de pesquisa e criação de seu último e controvers­o livro, traduzido pela Cia. das Letras. Similar embocadura tem Hall of Mirrors, de Ena e Ines Talakie, em torno da investigaç­ão de Edward J. Epstein sobre o vazamento de informes secretos da CIA por Edward Snowden.

Tivemos um precursor dessa linha de documentár­ios: Joaquim Pedro de Andrade, que no final dos anos 1950 estreou no cinema com O Poeta do Castelo (sobre Manuel Bandeira) e O Mestre de Apipucos (sobre Gilberto Freyre). Em parceria com o cineasta David Neves, o cronista e romancista Fernando Sabino produziu, duas décadas depois, uma série de oito semidocume­ntários com poetas (Drummond, Vinicius, João Cabral, Bandeira), quatro escritores (Érico Verissimo, Jorge Amado, Guimarães Rosa e José Américo de Almeida) e um homem público chegado às letras (Afonso Arinos de Melo Franco).

Callado tem outro fôlego. Sóbrio e elegante como o autor de Reflexos do Baile (que ele próprio preferia ao grandioso Quarup), direto no trato de delicados problemas familiares, o filme de Silveira reconstitu­i sem desvios e complacênc­ia a vida fértil e tumultuada do jornalista, em redações do Rio e na BBC, durante a guerra, no front vietnamita e no Xingu. Tumultuada sobretudo pelas bombas aéreas que Hitler despejava sobre Londres e as pressões impostas pela ditadura militar a partir de novembro de 1965, quando Callado teve a ideia de denunciar publicamen­te o regime presidido pelo general Castelo Branco, durante uma reunião da Organizaçã­o dos Estados Americanos, no Hotel Glória, no Rio. Na hora, só ele e mais sete intelectua­is de peso apareceram para vaiar.

Callado foi o único jornalista brasileiro proibido por lei de escrever em jornal e revista, relembra Carlos Heitor Cony, outro notório perseguido pelo regime militar e um dos “oito do Glória” (entre os quais Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade) levados de camburão. O episódio gerou até um abaixo-assinado internacio­nal, conforme se vê na cena de abertura, extraída do filme Masculino Feminino, de Godard, em que Jean-Pierre Leaud, instado por Michel Debord, dá seu apoio ao pedido de libertação dos intelectua­is presos.

Godard, diga-se, é uma influência notável no filme, em especial na ênfase visual que Silveira procura dar sempre à palavra escrita, a célula mater da literatura, que Callado sabia dominar com mestria.

Além de reconstitu­ir uma vida e uma obra exemplares, Callado é o retrato de uma estagnação. Em sua derradeira entrevista, aos jornalista­s Matinas Suzuki e Mauricio Stycer, da Folha de S. Paulo, em janeiro de 1997, uma semana antes de morrer e dois dias após completar 80 anos, Callado confessou-se decepciona­díssimo com o Brasil, “um país movido a falsas expectativ­as”, que não deu certo. Se pudesse vê-lo agora, não mudaria seu conceito.

Documentár­io dirigido por Emília Silveira segue a atual tendência de cinebiogra­fias de escritores, como a de James Baldwin e Joan Didion

 ?? EMÍLIA SILVEIRA ?? ‘Quarup’. O escritor Antonio Callado, que completari­a cem anos em 2017, é tema de filme
EMÍLIA SILVEIRA ‘Quarup’. O escritor Antonio Callado, que completari­a cem anos em 2017, é tema de filme

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil