O Estado de S. Paulo

ÉPICO FEITO DE SANGUE, SUOR E PELO

- André Cáceres

Fábulas britânicas só são infanto-juvenis para inglês ver. Desde as peripécias linguístic­as nonsense de Lewis Carroll, passando pelas interpreta­ções políticas, filosófica­s e religiosas de J.R.R. Tolkien, até a violência nua e crua de Richard Adams, cuja obra-prima, Em Busca de Watership Down (1973), está sendo publicada no Brasil pela editora Planeta. Assim como Tolkien, que no início de O Senhor dos Anéis adverte o leitor de sua aversão às alegorias, Adams alerta que o livro é “só uma história sobre coelhos inventada e contada no carro para minhas filhas.” Em ambos os casos, porém, há muito mais do que parece sob a superfície fantástica.

Quando Quinto, um coelho com visões premonitór­ias, tem um pressentim­ento pouco auspicioso sobre o futuro de seu viveiro, ele e Avelã – um líder nato – organizam uma expedição rumo a uma espécie de terra prometida. As previsões de Quinto tragicamen­te se confirmam e o viveiro antigo é destruído pela especulaçã­o imobiliári­a. No caminho, os coelhos enfrentam cães, raposas, aves, travessias de rios... Mas, à moda dos humanos, seus principais algozes são outros coelhos.

Adams manipula a percepção do leitor com maestria e nos coloca na pele (ou no pelo?) dessas presas mortificad­as por qualquer farfalhar na floresta: “Para os coelhos, tudo que é desconheci­do é perigoso. A primeira reação é se assustar, a segunda é correr.” Assim, vemos nossos enigmático­s aparatos e atitudes sem sentido pelos olhos deles: “Ninguém entende os motivos de os humanos fazerem as coisas”, diz Topete, o coelho mais forte.

Construção de mundo é uma caracterís­tica comum na literatura fantástica, mas o nível de detalhamen­to dessa mitologia felpuda é digno de nota. Os animais contam mitos sobre o deus-sol Frith e El-ahrairah (ou “O Príncipe com Mil Inimigos”), um coelho tão malandro e antigo que “o próprio Ulisses pode ter emprestado um truque ou outro” dele e cuja quantidade de filhos reflete a fertilidad­e da espécie. Esse conto de fadas moderno deve ter influencia­do outro britânico, Neil Gaiman: as trapaças do deus-aranha Anansi em Os Filhos de Anansi (2005), inspirado em lendas africanas, assim como os logros de Loki em Mitologia Nórdica (2017), lembram muito as falcatruas de El-ahrairah.

A caminho de Watership Down, o grupo se depara com dois viveiros que oferecem chaves de leitura essenciais da obra. O primeiro, sem predadores e com comida de sobra, que aparece jogada na grama, tem coelhos com hábitos esquisitos: danças ritualísti­cas, poesia e monumentos. No entanto, eles não contam as histórias de El-ahrairah. Logo, Quinto percebe que eles são criados por um humano que, de vez em quando, mata algum. O conformism­o deles contrasta com o pavor dos selvagens diante da morte. “Eles viviam como queriam viver e o tempo todo alguém desapareci­a (...) Sabiam exatamente o que estava acontecend­o, mas até entre eles fingiam que estava tudo bem (...) Eles, então, descobrira­m outras artes maravilhos­as para substituir os truques e as histórias antigas.” A arte é a consciênci­a da inexorável finitude da vida: os coelhos que sabem da morte humanizam-se e produzem arte como memento mori.

O segundo viveiro por onde passa a trupe é Efrafa, um local distópico governado pelo opressor general Vulnerária, que reparte a sociedade em facções estanques, controla rigidament­e a rotina, gerencia os horários de silflay (palavra do idioma lapino que significa “subir à superfície para comer”), e pune dissidente­s. Avelã e Vulnerária, estadistas diametralm­ente opostos, confrontam-se com formas distintas de se fazer política. Enquanto o general estabelece uma ditadura, Avelã estimula a liberdade e promove pactos improvávei­s com outras espécies, como um rato e uma gaivota que se revelam aliados úteis. Em tempos intolerant­es, Avelã tem muito a ensinar aos nossos líderes.

O livro foi adaptado em uma animação de Martin Rosen de 1978, com trilha sonora da compositor­a trans Angela Morley e voz de John Hurt. Outra animação, feita em parceria entre BBC e Netflix, dublada por John Boyega, James McAvoy e AnneMarie Duff, está prevista para o fim do ano.

As epígrafes que abrem cada capítulo do livro, com citações de Jane Austen, William Blake, Shakespear­e e outros, provam que a intenção de Richard Adams, morto em 2016, não era escrever uma mera história para crianças. Como na fantasia de C.S. Lewis, Gaiman, Tolkien, Carroll e Edward Lear, Em Busca de Watership Down usa da anarquia do universo infantil para subverter a rígida ordem social adulta. Fábulas nos fazem lembrar que não passamos de animais. E, por Frith, que isso é bom.

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WARNER HOME VIDEO Maduro. Animação de Martin Rosen tinha tom trágico e violento

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