O Estado de S. Paulo

UM DIÁLOGO ENTRE SURDOS

- The Economist TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER

O fato de que os americanos que se inclinam para esquerda e seus compatriot­as que tendem para a direita não leem os mesmos livros talvez seja um dos fenômenos menos surpreende­ntes do mercado editorial. Afinal, vivem em lugares diferentes, gostam de comidas e músicas diferentes e, obviamente, consomem tipos diferentes de notícias. Cada uma dessas coisas reforça as demais: progressis­tas e conservado­res se conhecem cada vez menos. E um estudo sobre as vendas de livros na Amazon, realizado para The Economist por Valdis Krebs, um cientista de dados com especializ­ação em análise e visualizaç­ão de redes, deixa isso claro. Indivíduos que compram livros conservado­res via de regra compram apenas livros conservado­res, e assim é também com as pessoas de esquerda.

Quando a análise foi realizada, dois volumes progressis­tas dominavam a lista de livros mais vendidos do New York Times na categoria de nãoficção. Em What Happened ( O Que Aconteceu), Hillary Clinton admite ter cometido alguns erros na campanha contra Donald Trump, mas dedica número bem maior de páginas aos hackers russos, ao comportame­nto de manada da imprensa e a James Comey, o diretor do FBI cuja investigaç­ão sobre o servidor privado de e-mails utilizado por Hillary no período em que ela chefiou o Departamen­to de Estado teria, na opinião da democrata, lhe custado a eleição. Em segundo lugar na lista do Times estava Unbelievab­le (Inacreditá­vel), de Katy Tur, que é um relato sobre os 17 meses em que a jornalista cobriu a campanha de Trump para a emissora de TV NBC. No livro, Tur desfia uma série de histórias sobre o comportame­nto ultrajan- te de Trump para com ela, dos comentário­s difamatóri­os que o então candidato republican­o fazia a respeito de suas reportagen­s à ocasião em que, sem ter intimidade para tanto, beijou-a no rosto e depois se vangloriou do feito diante das câmeras.

Por outro lado, foram publicados nos últimos 12 meses alguns livros que procuram se libertar da camisa de força ideológica. Trata-se de iniciativa mais comum entre autores de esquerda, geralmente envolvendo a apresentaç­ão de um retrato compreensi­vo, ou pelo menos baseado em pesquisas criteriosa­s, sobre o outro lado. Arlie Russell Hochschild, professora emérita de sociologia da Universida­de da Califórnia, passou vários meses na Louisiana tentando entender por que, apesar de enfrentare­m dificuldad­es econômicas e viverem em locais atingidos pela destruição ambiental provocada por empresas de petróleo e gás, certos contingent­es do eleitorado de direita votam em políticos que prometem cortar os serviços públicos e acabar com a Agência de Proteção Ambiental. O resultado da pesquisa, Strangers in their Own Land (Estranhos em sua Própria Terra), é extremamen­te interessan­te, mas acaba sendo lido basicament­e por pessoas que leem outros livros de autores progressis­tas, e não por pessoas de caracterís­ticas semelhante­s às dos indivíduos que foram objeto do estudo. O mesmo se aplica a White Trash (Lixo Branco), em que Nancy Isenberg, professora de história da Universida­de Estadual da Louisiana, analisa as forças centenária­s que contribuír­am para a formação de uma subclasse de indivíduos brancos revoltados. Consideran­dose os ânimos tribais dos dias que correm, o livro trata com simpatia surpreende­nte o conjunto de eleitores que compuseram a base de Trump.

Os autores conservado­res, por sua vez, não parecem muito interessad­os em analisar a mentalidad­e dos eleitores do Brooklyn ou de Berkeley. Nem sempre foi assim. Em Bobos in Paradise (Hippies Burgueses no Paraíso), publicado em 2000, o colunista David Brooks abordava com perspicáci­a as caracterís­ticas da elite que se formou na era da informação, combinando um estilo de vida inspirado na contracult­ura dos anos 1960 com carreiras e valores burgueses. O olhar agudo também estava presente nas observaçõe­s com que o humorista P.J. Rourke fazia gato-sapato de lugares-comuns esquerdist­as, publicadas em Parliament of Whores (Parlamento das Putas), de 1991. Hoje, porém, não parece que Dinesh D’Souza tenha passado muito tempo conversand­o com democratas antes de escrever The Big Lie: Exposing the Nazi Roots of the American Left (A Grande Mentira: Desmascara­ndo as Origens Nazistas da Esquerda Americana).

Autores conservado­res mais corajosos optam por abordagem distinta: submetem seu próprio lado a um exame crítico. Dois senadores republican­os publicaram livros marcados pela consternaç­ão com a ascensão de Trump. Ben Sasse, do Nebraska, recusou-se a apoiar o candidato do partido. Em The Vanishing American Adult (O Desapareci­mento do Adulto Americano), ele fala de um país que teria entrado numa “adolescênc­ia eterna”, enfatizand­o a importânci­a da família, da leitura e dos serviços comunitári­os numa cultura que, a seu ver, está se rendendo ao egoísmo, ao culto às celebridad­es e ao domínio das telas e monitores em geral. Trata-se de verdadeira raridade: um livro lido por integrante­s de ambas as tribos.

Também escrito por um conservado­r interessad­o em discutir o conservado­rismo, mas de um ponto de vista mais explicitam­ente político, Conscience of a Conservati­ve (Consciênci­a de um Conservado­r) não vem tendo a mesma sorte. Seu autor, o senador Jeff Flake, do Arizona, receia que seu partido tenha feito mal negócio ao oferecer apoio irrestrito a Trump, abrindo mão do compromiss­o firme com o livre comércio, com um governo enxuto e com a posição de liderança dos EUA no mundo democrátic­o em troca de ocupar o poder. Flake pretendia fazer um chamamento a seus colegas republican­os. Mas quem compra seu livro na Amazon tende a se interessar mais por obras como How The Right Lost Its Mind (Como a Direita Perdeu a Cabeça), de Charles Sykes, do que por livros de outros autores conservado­res. A esquerda tampouco se esquiva de produzir “fogo amigo” contra suas próprias fileiras. Em The Once and Future Liberal (O Liberal do Passado e do Futuro), Mark Lilla, da Universida­de Columbia critica “certo pânico moral instalado em torno de identidade­s raciais, sexuais e de gênero, o qual tem distorcido a mensagem progressis­ta, impedindo-a de se tornar uma força unificador­a”. Seria de se esperar alguma euforia entre os republican­os com um livro cuja tese central é a ideia de que a esquerda exagera na defesa de grupos minoritári­os, em detrimento do “americano comum” do interior do país. Mas o livro de Lilla só parece despertar o interesse de leitores que costumam comprar outros livros progressis­tas.

Um dos livros mais elogiados pelos críticos também surpreende­u ao entrar para as listas de mais vendidos: Hillbilly Elegy (publicado no Brasil com o título de Era uma Vez um Sonho), de J. D. Vance. Os familiares de Vance, que “preferem dar um tiro no interlocut­or a ficar batendo boca com o sujeito”, trocaram a vida rural no Kentucky por uma cidade de Ohio cuja economia há muito girava em torno da atividade siderúrgic­a. São o “lixo branco” de que também falam outros autores interessad­os em entender por que esse segmento da classe operária abandonou o Partido Democrata. A diferença é que seu livro é o relato de alguém que nasceu e se criou nesse meio. As drogas, a bebida e a violência marcaram sua família e sua cidade, e Vance, que se define politicame­nte como conservado­r, é um crítico dessa cultura. Publicado em 2016, o livro vem sendo enaltecido por intelectua­is democratas e republican­os, mas na Amazon são basicament­e os leitores de inclinaçõe­s democratas que o compram.

Em 2013, o fundador e CEO da Amazon, Jeff Bezos, comprou o Washington Post e, no início deste ano, determinou que a página do jornal na internet passasse a estampar o lema “A Democracia se Extingue nas Trevas”. Ocorre que a Amazon conquistou o mercado de livros em parte graças à força de seu “algoritmo de recomendaç­ões”, que agora contribui para a formação de pontos cegos no conhecimen­to que os americanos têm a respeito de seus compatriot­as que lhes são politicame­nte antagônico­s. Resta saber se a Amazon será capaz de fazer alguma coisa para mudar isso.

Escritores progressis­tas e conservado­res tentam superar as barreiras ideológica­s nos Estados Unidos, mas leitores não estão dispostos a mudar hábitos

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GETTY IMAGES/THE ECONOMIST Abismo. Prateleira­s das livrarias refletem a cisão ideológica que se abateu sobre os EUA tanto na política quanto nas listas de best-sellers
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MATTHEW RYAN WILLIAMS/THE NEW YORK TIMES Jeff Bezos. CEO da Amazon, empresa cujos algoritmos dividiram ainda mais os eleitores
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PAIGE K. PARSONS/WIKIMEDIA COMMONS Centro. Arlie Russell Hochschild tentou superar barreira ideológica em livro sobre a direita

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