O Estado de S. Paulo

DE ALÉM-TÚMULO, DUCHAMP

- TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ Marc Mewshaw

Quando lhe perguntava­m se se preocupava com o que os contemporâ­neos pensavam dele, Marcel Duchamp respondia: “Prefiro esperar pelo julgamento de um público que venha 50, 100 anos depois de minha morte”.

Essas palavras ganham agora uma aura de profecia. Quarenta e nove anos depois da morte de Duchamp, o artista turco-americano Serkan Ozkaya apresentar­á um modelo em tamanho natural da obra de despedida do artista, Étant Don

nés, no estúdio de Greenwich Village, que um dia foi ocupado pelo pai da arte conceitual. A recriação de Ozkaya é ímpar na história das leituras de Duchamp: não é homenagem nem reinterpre­tação, mas, antes, um veículo para o que Ozkaya sugere ser uma descoberta alucinatór­ia.

E que descoberta? Nas condições certas, afirma Ozkaya, Étant Donnés, um diorama gráfico com recursos de peepshow para ser visto através de fendas, exposto no Philadelph­ia Museum of Art, transforma-se num projetor que emite uma imagem do próprio Duchamp – nada menos que como seu alter ego mulher, Rrose Sélavy.

Então, um autorretra­to até agora não notado permaneceu à espreita por cinco décadas no interior de um trabalho supremamen­te enigmático? Para devotos de Duchamp, um dos mais influentes artistas do século 20, trata-se de uma descoberta equivalent­e à dos Manuscrito­s do Mar Morto.

O único problema é que ela pode ser apenas uma ilusão de percepção de Ozkaya.

Amantes de arte mais curiosos em breve terão a chance de avaliar por si mesmos. A réplica de Ozkaya será exibida ao público a partir de 21 de outubro na Postmaster­s Gallery, após uma breve apresentaç­ão para convidados no antigo estúdio de Duchamp na East 11th Street. Não há dúvidas de que a instalação de Ozkaya, intitulada We Will Wait (“Esperaremo­s”, ou, em francês, “En Attendons”, anagrama de Étant Don

nés) projeta uma imagem. Se os espectador­es verão nessa etérea mancha de Rorschach uma fluida semelhança com Duchamp – ou só uma miragem –, pode depender do gosto de cada um por uma boa história de fantasma.

A obra de Ozkaya leva a um amplo questionam­ento de nosso momento cultural. Numa época de apropriaçã­o desenfread­a, qual o direito de artistas contemporâ­neos proporem reinterpre­tações de obras canônicas para dar subsídios às próprias carreiras? A peça de Ozkaya é um trabalho de pesquisa, uma reimaginaç­ão criativa ou um sequestro de arte?

Por 20 anos, Duchamp trabalhou em segredo em Étant Donnés, (traduzido livremente: “tendo em vista que”) mantendo a ficção de que havia abandonado a arte para se dedicar ao xadrez. Revelado ao público anos após sua morte, em 1968, sem textos explicativ­os, o diorama (obra tridimensi­onal) de Duchamp, concebido em 1946, é um sedutor desafio para gerações de artistas e estudiosos. Ou, como disse Julian Jason Haladyn, teórico da arte que escreveu Marcel Duchamp: Étant Donnés,

“um gesto final do artista para deixar na história de sua obra uma eterna indagação”.

A própria abordagem de Ozkaya sobre essa questão começou com um incômodo “e se”: e se

Étant Donnés pudesse funcionar como um tipo de projetor conhecido como câmera escura? Em caso positivo, que imagem ele produziria? Estudiosos como o filósofo Jean-François Lyotard e arquiteta Penelope Haralambid­ou já fizeram especulaçõ­es semelhante­s.

Uma câmera escura é tipicament­e uma caixa negra com um furo pelo qual a luz externa é projetada na parede interna da caixa, criando uma imagem. Em contraste, o fac-símile de Ozkaya afunila uma luz originada dentro da caixa – a instalação em si – através das duas fendas de observa- ção, para o espaço do espectador. Quando os dois feixes gêmeos de luz atingem a tela colocada por Ozkaya em frente às fendas, as duas imagens projetadas (ambas fotos instantâne­as invertidas do interior da instalação), eles se interpõem parcialmen­te. O campo geométrico de cor que formam pode, com um pouco de imaginação, ser interpreta­do como um rosto.

Mas, é o rosto de Marcel Duchamp? Ozkaya prefere deixar que os espectador­es tirem suas conclusões, embora ele tenha a própria opinião, que resume: “Uma vez que você viu, não pode não ter visto.”

O artista nascido na Turquia, que fez carreira sempre com estudadas e bem-humoradas provocaçõe­s, baseou sua cópia no detalhado manual de instruções esboçado por Duchamp para a montagem de Étant Donnés, além de exaustivas pesquisas. A reprodução em 3D levou três anos para ser concluída e tem as dimensões e formato originais, mas as fendas de observação foram ampliadas para permitir uma imagem maior.

Um ano antes de começar seu facsímile, o artista procurou o Philadelph­ia Museum of Art com a proposta de testar sua hipótese pendurando uma tela de velino a algumas polegadas das fendas de Étant Donnés.

Ele apresentou então fotos produzidas com seu modelo feito em escala 10 x 1. Segundo Matthew Affron, curador do museu, os resultados foram considerad­os ambíguos demais para justificar um teste aparenteme­nte conflitant­e com as intenções originais de Duchamp.

“Há muitas evidências de que a ideia original do artista fosse mesmo a de uma pessoa olhando para dentro da obra através dos furos”, disse Affron. “Não nos cabe alterar a óptica de Étant Donnés.”

Outros especialis­tas em Duchamp, porém, não descartam tão rapidament­e a possibilid­ade de que Étant Donnés tenha sido concebida para funcionar tanto como observatór­io externo quanto como projetor interno. Julian Jason Haladyn admitiu que vê um rosto nas fotos da projeção, mas não o identifico­u como o de Duchamp. Ele assinalou, porém, que “luz, sombras e projeção fazem parte do vocabulári­o de do artista”.

Além disso, é conhecido o fascínio de Duchamp por autorretra­tos e obras de arte que são aparelhos fantástico­s. Gozador notório, ele gostava também de fazer pegadinhas elaboradas. “Sua resposta a críticas demolidora­s era lançar novas ideias para confundir as interpreta­ções dos críticos”, disse Haladyn.

Artista recria ‘Étant Donnés’, instalação póstuma de Duchamp, para revelar projeção de autorretra­to supostamen­te oculto por décadas na obra

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FOTOS: VINCENT TULLO/THE NEW YORK TIMES Ilusão de ótica. Projeção de imagens na instalação ‘We Will Wait’, modelo de ‘Étant Donnés’, de Marcel Duchamp, revela semelhança com Rrose Sélavy, alter ego feminino do artista
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MAN RAY, 1921 Feminino. Rrose Sélavy, alter ego do artista
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Última. ‘Étant Donnés’, instalação de concebida em 1946, mas descoberta postumamen­te
 ??  ?? Obsessão. ‘We Will Wait’, de Serkan Ozkaya
Obsessão. ‘We Will Wait’, de Serkan Ozkaya
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Remake. Serkan Ozkaya recriou o trabalho

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