O Estado de S. Paulo

A OUSADIA DO ARTISTA EM SUA VERSÃO BRASILEIRA

- André Cáceres

Isso é uma obra de arte?”, perguntara­m-se em 1917 os espectador­es que se chocaram com a ousadia de Marcel Duchamp, que colocou um urinol no Salão de Artistas Independen­tes e chamou-o de Fonte. Cem anos depois, polêmicas recentes envolvendo a performanc­e La Bête, de Wagner Schwartz, no MAM de São Paulo; a proibição temporária da peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu em Jundiaí; e o cancelamen­to da exposição

Queermuseu, no Santander Cultural de Porto Alegre demonstram que o mictório do artista francês ainda é pertinente – ou que a sociedade regrediu um século nos últimos meses. Duchamp é o tema da exposição Ready Made in

Brasil, que reúne, a partir de 10 de outubro no Centro Cultural Fiesp, obras de 50 dos maiores artistas brasileiro­s dos séculos 20 e 21, como Lygia Clark, Wesley Duke Lee, Hélio Oiticica e Nelson Leirner, para revelar a influência de Duchamp na arte brasileira. “A apropriaçã­o e o deslocamen­to estão muito presentes na arte contemporâ­nea. A ideia foi fazer uma linha do tempo desde os anos 1960 até o presente e Duchamp se mostra fundamenta­l para entendermo­s esse presente”, afirma o curador Daniel Rangel. Ele vê a abertura da exposição em um momento muito oportuno, em meio a debates sobre o que é arte ou sobre o nu na criação artística. “É engraçado como as pessoas estão questionan­do a história, como estão colocando questões já superadas, vencidas”, lamenta Rangel.

O curador argumenta: “Se o artista não for provocador na sociedade, quem o será? A gente precisa dos artistas como dos médicos, em qualquer civilizaçã­o.” Rangel enxerga uma relação entre o tema da mostra e o momento atual. “Duchamp fala do ato criador, da liberdade do artista, da necessidad­e de se pensar outro sistema, senão a gente não tem uma evolução.”

A exposição, por meio de Duchamp, “consegue tocar em todos esses assuntos, na questão de gênero, no que é arte, no ready made, e insere o público dentro do fazer artístico, pois hoje em dia a obra se completa com a interpreta­ção”, acredita Rangel. A linha do tempo da mostra se inicia somente nos anos 1960, década em que Duchamp morreu, porque “a sociedade tem um tempo para poder absorver tudo isso, até os próprios artistas de certa forma demoraram”.

Na mostra, o destaque do curador está na ruptura dos anos 1960 capitanead­a pelos neoconcret­istas cariocas, como Lygia Pape, e pelos concretos paulistano­s, como Augusto de Campos e Waldemar Cordeiro. Para ele, porém, a principal geração duchampian­a no Brasil veio nos anos 1970, por isso a exposição conta com trabalhos de Tunga, Regina Silveira, Cildo Meireles e Waltercio Caldas.

A intenção de Rangel é “abrir a mente das pessoas com relação ao fazer artístico”, pois ele crê que a arte contemporâ­nea é mais próxima do público, menos elitista e mais democrátic­a. “Duchamp traz a questão da técnica para o mental, é um gesto político dele, que rompe com uma arte voltada para a elite, feita por uma técnica que não era ensinada em qualquer esquina”, conclui o curador.

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