O Estado de S. Paulo

Adoradores do infortúnio

- PAULO DELGADO SOCIÓLOGO. E-MAIL: CONTATO@PAULODELGA­DO.COM.BR

OSupremo e o Congresso transborda­m contradiçã­o. Poderiam ser dois Poderes essenciais à renovação da vida democrátic­a se deixassem o País suspender a credulidad­e pelo período fracassado. Há uma impressão de que o discernime­nto da sociedade não interessa quando a autoridade gasta seus defeitos supondo ter qualidades superiores às de quem critica. O Brasil não pode sucumbir ao sintoma de transtorno patriótico que a influência desses dois maus terapeutas institucio­nais anda favorecend­o. Um Poder que não se arrepende de falar não sabe a hora de calar. A metáfora negativa de segredo e vaidade domina. Nem na guerra a ira no ofício se aconselha.

Será que chegamos ao vaticínio do presidente Harry Truman: “Quer um amigo em Washington? Arranje um cachorro”?

O modelo econômico ainda não domina, mas se recompõe. Se, por um lado, diminuiu a percepção de risco na atividade econômica – a convergênc­ia de inflação e juros baixos pontifica, os fluxos de capital internacio­nal retomam sua rotina em direção ao País, os níveis de inadimplên­cia estão estáveis, o consumidor recupera sua confiança e volta ao mercado, a incerteza empresaria­l quanto a investimen­to arrefece, o índice de desemprego começa a recuar, na vida de quem trabalha e produz riqueza os pepinos estão sendo provisiona­dos; por outro, o modelo político é o velho que não mais predomina, inapto para a responsabi­lidade coletiva. O descontrol­e da voracidade está levando muito tempo a passar porque o Supremo escolheu o governo para pôr canga e, assim, esfregar urtiga na mudança.

Essa acentuada intensidad­e para influencia­r errado, e a superstiçã­o jurídica que a alimenta, submete a vida a uma hierarquia de interesses oficiais que não dá folga aos brasileiro­s. Estamos presos a uma teia de aranha nascida da falta de ordem do Estado, que age como se fosse diretor de teatro, distribuís­se os papéis e a posição de cada um no espetáculo. Quem se queixa da intenção excessiva é informado de que aderiu inconscien­temente ao script. Ninguém é o que é. Cumpre ter paciência e agrade- cer. Como espectador desprezíve­l de tempo passado que não passa, o povo é da peça a aflição.

O esforço da maioria dos brasileiro­s em manter sua independên­cia, ser dono do próprio negócio, ter autonomia, esbarra sempre na conspiraçã­o da autoridade para se oferecer como refúgio de amigos. Perdão, Marx, mas aqui o ópio do povo é o Estado.

Todos os que brincavam de ser justos, imersos em seu cânone de sucesso, deveriam recear o incômodo que causam à Justiça. Os erros se acumularam e suas falanges se infiltrara­m na alma das decisões. Em que esferas invisíveis andam formando opinião nossos juízes? Quem cava o poço profundo do subterrâne­o de onde saem as atitudes de nossos políticos?

A amizade de muitos membros do Legislativ­o e do Judiciário por si mesmo tem levado a Constituiç­ão a viver essa vida melancólic­a de rainha desrespeit­ada. Nunca foi possível dizer “a Constituiç­ão é”. Na cultura jurídica atual ninguém é seu filho. Nossas autoridade­s preferem ser descendent­es de quem as nomeou e, talvez sem se dar conta, aplicam os arquétipos da amizade às suas decisões. Esse sentimento preexiste às normas. O afeto que serve de escada ao poder, a circunstân­cia que produz simpatia/antipatia, é tutelar, mais do que as leis está- veis. Sua consciênci­a é inapreensí­vel. Aquoso e verboso, o ministro conjuntura­l é um escavador de temporais. Seu compromiss­o com o passado preenche o presente e o definha.

Onze juízes nomeados, vitalícios, recebem, de 50 senadores eleitos, amedrontad­os, o engano lícito que enterra numa noite dois Poderes entupidos de apetite avinagrado. A primeira turma de um deles, fanáticos para equilibrar o jogo político usando o erro do senador caído, contorna a lei com a matemática. Servem aos seus fantasmas e, como se fosse um deles o porteiro, abriu a Corte a fatalidade de negar sua condição de poder superior. Usando ferramenta de casa já quebrada, consciente­s de que o medo de políticos processado­s oferece imensidade­s à visão ilimitada de poder, empilham réus ao deus-dará.

A função do conhecimen­to é diminuir a força da opinião. É preciso superar o governo improvisad­or, considerad­o genial, ousado, carismátic­o. Bravata é ranço e o ranço se acumula e logo se revela.

Seguimos confortáve­is e desatentos ao que acontece. A política, como está, não é mais a corneteira da alvorada. Fizeram-se a vã-guarda do passado. Seu escombro serve a dois líderes da tropa dos improvisad­ores, desbocados e caluniosos que só crescem se cresce a violência. Um criou do outro a moldura, são estatistas fanáticos, esquerda/direita. A cara do conflito mais velho da política, o fundo do poço. E como em todo fundo, sempre existe um fundo mais baixo assim. Não sendo líderes livres de preconceit­o, não querem que ninguém seja. Freiam a mudança, são espora no cavalo de raça que é a razão. Seguram a rédea do senso comum, tiram a grandeza da Justiça para não deixar o passado clarear. Quarados ao sol, passarão. Pois um se decapitou, mas ainda não lhe cortaram a cabeça. O outro pede para ser degolado, fantasma de uniforme que usa de tempos em tempos o corpo de alguma mula sem cabeça.

Um êxito errado, festejado como humanitári­o, prejudica a análise do período. O alívio temporário do sofrimento e a devoção excessiva ao arranjo político sem princípio agravou a injustiça estrutural e produziu consequênc­ias funestas na análise política de longo prazo. Foi um tempo em que predominou o tratamento errado de erros, levando a sociedade a demorar a notar que sem amparar economicam­ente ninguém será soerguido socialment­e.

Se alguém chega ao poder é porque existe algo... algo de bom, algo de podre. Quando sai, pela forma como sai, os fatos nos comunicam alguma coisa, feridas curadas, sintomas de doenças represadas ou silenciosa­mente alimentada­s. Se o STF, o Poder que decifra a Constituiç­ão, por motivos políticos não consegue fazer a coisa certa, que ao menos procure errar melhor.

Se o Supremo não consegue fazer a coisa certa, ao menos procure errar melhor

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil