O Estado de S. Paulo

Limpar o nariz, casar e votar

- JOSÉ EDUARDO FARIA PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP E PROFESSOR DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

Tradiciona­is pescadores de águas turvas, políticos de diferentes partidos encalacrad­os na Lava Jato não hesitaram em aproveitar os novos e abjetos áudios do empresário Joesley Batista para reivindica­r – com base na teoria da árvore envenenada – a nulidade de todas as provas nos casos em que foram indiciados ou já são réus. Segundo essa teoria, provas produzidas em decorrênci­a de descoberta­s feitas por meios ilegais estariam contaminad­as, devendo ser descartada­s por derivação. O cinismo foi tanto que alguns ministros do STF deixaram divergênci­as de lado e tentaram conter a falta de pudor, afirmando que informaçõe­s obtidas pela Procurador­ia-Geral da República a partir do acordo de delação firmado com o empresário poderão ser aproveitad­as em ações criminais.

A invocação dessa tese por personagen­s moralmente desqualifi­cadas dá a medida da degeneresc­ência da vida política brasileira, uma vez que recorrem a alegações simplórias e falsas – mas embaladas pela retórica politicame­nte correta do “garantismo” – como argumento de defesa. À medida que entendem que uma mentira contada mil vezes adquire força de verdade e que a verossimil­hança pode sobrepor-se ao verdadeiro, os argumentos de políticos envolvidos com corrupção sistêmica acabam corroendo as referência­s do sistema partidário. Esse é, entre outros, um dos fatores responsáve­is pelo distanciam­ento do sistema partidário com relação à sociedade – e, por consequênc­ia, da incapacida­de do sistema político de gerir a complexida­de socioeconô­mica.

Oligarquiz­ados, os partidos perderam seiva ideológica, deixando de cumprir as funções de representa­ção e seleção de quadros para governar. Com baixo grau de credibilid­ade e representa­ção, não articulam valores, não formulam projetos de poder e não atendem às aspirações sociais. Burocratiz­ados, abandonara­m a preocupaçã­o com interesses coletivos e o bem comum, tornando-se coniventes com a apropriaçã­o do processo legislativ­o por corporaçõe­s e empresas, que passaram a comprar os marcos jurídicos nas áreas em que atuam. Num período de flagrante incapacida­de do Legislativ­o de se articular com o Executivo para propiciar a criação de empregos e assegurar padrões mínimos de bem-estar material, o sistema partidário cede espaço a novas formas de manifestaç­ão de insatisfaç­ões, como coletivos e movimentos sociais. É visível o enfraqueci­mento dos atributos da representa­ção democrátic­a tradiciona­l, como participaç­ão cidadã, eleições livres e proteção das minorias. Também é visível a perda de eficiência dos modelos de governança social, o que resulta num processo de flexibiliz­ação de direitos. Basta ver como têm aumentado as propostas de redução de direitos, no âmbito do direito do trabalho, do consumidor e da saúde.

Por sua natureza aberta e horizontal, as redes sociais abrem caminho para novos tipos de co- municação e mobilizaçã­o, facilitand­o a difusão de todo tipo de opinião e propiciand­o formas contundent­es de protesto. Também têm ampla capacidade de conectar todos instantane­amente, permitindo observação e controle sem necessidad­e de mediações organizati­vas. Contudo não se têm revelado eficazes na construção de alternativ­as, em matéria de governabil­idade. Graças às redes digitais, movimentos sociais se multiplica­m, vocalizand­o frustraçõe­s e ocupando as ruas em protestos contra a corrupção e políticas de austeridad­e. Seus resultados, porém, não estão à altura das expectativ­as que suscitam.

O desprezo pelos políticos resulta da perda da confiança da sociedade na capacidade dos mecanismos políticos tradiciona­is de limar diferenças, promover negociaçõe­s e construir uma vontade coletiva. Como diz Sérgio Abranches em recente e belo livro ( A Era do Imprevisto, 2017), a sociedade em rede está vivendo a instabilid­ade do presente e a aflição de um futuro incerto. O mundo político continua ancorado em velhos e estreitos interesses, insensível e surdo às necessidad­es e aspirações das novas camadas sociais. O problema é que muitos dos que se sentem frustrados não conseguem distinguir a classe dirigente e o sistema de forças que domina a política do modo de governança. Veem na falência da geração que manda um mal terminal da própria democracia. As instituiçõ­es estão estreitas e rígidas demais para uma sociedade tão fluida. A fluidez das estruturas converte o desequilíb­rio dinâmico e a instabilid­ade em regras, e não em exceções – afirma. Assim, a política vive na incerteza e está sujeita a todo tipo de pressão, revelando-se incapaz de pôr limites aos desígnios do poder econômico e de pressões corporativ­as, por um lado, e à corrupção, por outro, argumenta o filósofo basco Daniel Innerarity, em obra recente sobre o tema ( La Política en Tiempos de Indignació­n, 2015).

A democracia é, além de um mecanismo de representa­ção baseado na regra de maioria, uma forma de organizaçã­o política pensada para dar respostas antagônica­s a um conjunto de perguntas abertas, dizem esses autores. Logo, se a democracia é um processo, uma democracia capaz de lidar com sociedades complexas, como a brasileira, deve ter uma pluralidad­e de espaços não só para o antagonism­os e protestos advindos de movimentos sociais, mas também para acordos, construçõe­s e exercício da racionalid­ade, a partir de formas legítimas de representa­ção e deliberaçã­o. Quando as sociedades se polarizam em torno de maniqueísm­os, como o nós contra eles, não há lugar para um processo democrátic­o autêntico. Por isso, é preciso não esquecer a advertênci­a de Gilbert K. Chesterton, um bem-humorado pensador inglês – lembrado por Innerarity – que apontou três coisas de que os eleitores não podem abdicar: limpar o nariz, eleger o parceiro conjugal e votar de modo consciente. Mas como forjar uma cultura política na qual posições matizadas não sejam desprezada­s por quem ignora essa advertênci­a? Por que são pouco reconhecid­os valores políticos apresentad­os com rigor e responsabi­lidade? Se não há alternativ­a fora da política, uma democracia complexa precisa ser uma democracia completa – e, no Brasil isso exige a reconstruç­ão do sistema partidário.

Por que são pouco reconhecid­os valores políticos apresentad­os com responsabi­lidade?

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil