Nem legal, nem legítima
Quando deparei com o artigo Intervenção, legalidade, legitimidade e estabilidade (5/10, A2) surgiram desconfortos típicos de quem não entende mais os discursos propagados em nossa sociedade. É fato que vivenciamos uma incerteza em relação aos caminhos que temos pela frente, mas passar desta incerteza para uma certeza autoritária regida pela instituição detentora do monopólio da repressão e violência é um passo que não se dá apoiado apenas em retórica vazia de usurpadores sedentos de uma rememoração fúnebre. Encanta-me o fato de o autor de tal artigo citar a Constituição e a Lei Complementar 97/1999 para, depois, depositar tudo num espaço aleatório e afirmar que a intervenção militar “será legítima e justificável, mesmo sem amparo legal”. Como alguém tão apegado à ordem, à hierarquia, à moral e aos bons costumes pode sustentar um ato que corrompe claramente o que está disposto nos escritos de máxima legalidade nacional? Seria uma postura que torna legítimos apenas seus atos próprios e ilegítimo tudo o que afronta o costume moralizante do segmento militar? Não poderíamos sustentar com base na mesma argumentação toda e qualquer infração à Constituição? Outro ponto que chama a atenção é considerar o Exército uma “instituição confiável”. Em hipótese alguma sugiro que não seja, mas não faço nexo causal entre confiabilidade e intervenção para higienização política. Devo ser claro, aliás, que muito dessa instabilidade e “sujeira política” advém do tempo em que os higiênicos militares estiveram no poder do Estado brasileiro. Não devemos confundir confiabilidade com competência de gerir a coisa pública e muito menos confiabilidade com tomada de atitudes indesejadas, como afirma o autor do artigo, da par- te de um poder que mesmo tomando atitudes desejáveis já impõe risco ao coletivo. Afirmo que não existe intervenção militar que goze de legitimidade, legalidade ou estabilidade num Estado Democrático que prevê em sua Constituição (artigo 5.º, XLIV): “Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”. Prevê também em sua Lei de Segurança Nacional (7.170/1983) que é considerado crime “fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”. Se significativa parcela da população pleitear as atitudes indesejáveis da Força Armada por causa do agravamento da crise atual, como sugere o autor do artigo, a solução não é estabelecer a ordem a partir de um poder não eleito e submisso aos Poderes democráticos, mas investir no cumprimento irrestrito das leis. Desse modo a legalida- de, a estabilidade e a legitimidade de um Estado Democrático implicam considerar como crime a manifestação ilegítima pela intervenção militar – seja de militares ou de uma população desorientada pelo messianismo de farda. Sendo assim, se a Força Armada é organizada com base na hierarquia e na disciplina, deve repensar o espaço dado aos seus integrantes que utilizam o ambiente público para disseminar palavras e atos que são tipificados como crimes, e não como um evangelho salvífico.
THIAGO DAVID STADLER, professor de Filosofia da Universidade Estadual do Paraná thibastadler@gmail.com
União da Vitória (PR)