O Estado de S. Paulo

Onde está a saída?

- ROBERTO DAMATTA ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Em qualquer sociedade honesta para com os seus valores, a saída reside na neutraliza­ção dos males que a afligem. Todos os coletivos têm coisas em comum. Em nenhum, estimula-se o assassinat­o, a doença ou a evasão de regras gerais em benefício exclusivo de alguma família, etnia ou classe social.

Todo sistema discerne que mazelas como a morte, a doença, a loucura, a corrupção, o fanatismo ou o crime – embora inevitávei­s – não podem ser transforma­das em valores. Reconhecer o mal não significa a ele render-se. O crime, conforme aprendi com Durkheim, é lamentavel­mente normal; mas só é normal se for combatido e evitado!

Essa velha lição parece ter sido esquecida no Brasil. Um sintoma disso é quando se tem dúvidas do remé- dio; ou quando os remédios aprofundam ainda mais o crime, fazendo com que vício e virtude se confundam a ponto de se perder o fio da meada. Daquilo que em qualquer grupo constitui sua fidelidade a si mesmo como grupo.

Quando os indivíduos se associam, eles deixam de ser exclusivam­ente motivados por seus interesses particular­es. A teia de relações estabeleci­das entre os membros de um coletivo passa a ser fundamenta­l nas suas decisões. Em todo elo há no mínimo dois egoísmos, mas não se pode esquecer que o elo é, ele próprio, um ator. Toda relação tem, como diria o grande Pascal, razões que os seus atores desconhece­m. Ou, como estamos testemunha­ndo com vergonha no caso brasileiro, fingem cínica e paradoxalm­ente em nome da lei, desconhece­r.

Os atores podem ter intuitos egoís- tas, mas as suas relações, paradoxalm­ente, fazem surgir dimensões que vão além desses propósitos já que elas têm também suas finalidade­s. Uma relação comercial só atende bem os seus atores na medida em que satisfaz sua finalidade de criar riqueza. Do mesmo modo, o amor é usado, mas ele também usa – quando não mata – seus amantes, como ocorreu com Romeu e Julieta.

Quando falamos que existe honra entre ladrões, apontamos para uma ironia. Como pode existir honra num gru- po de marginais pergunta o nosso lado individual­ista, invocando sem saber um elemento coletivo. Ora, diz o nosso lado sociológic­o, a honra entre ladrões, pervertido­s e marginais, é justamente aquilo que suas ações revelam sobre os seus sistemas. A honra entre ladrões – tal como as compulsões dos pervertido­s do marquês de Sade, de Freud e do diabo de Machado de Assis –é o testemunho daquilo que precisa ser investigad­o e compreendi­do.

Nem sempre, como descobrira­m Mandeville e Maquiavel, o egoísmo produz egoísmo. Mais das vezes, o vicio produz virtude e até mesmo santidade ou riqueza, como constatou o diabo brasileiro de Machado de Assis. Pelo mesmo paradoxo, nem sempre a benevolênc­ia engendra equidade. O nosso velho populismo não produziu igualdade, mas corrupção, traição, desmoraliz­ação e plutocraci­a.

Nas chamadas ciências sociais, o progresso consiste, como acentuou Albert Hirschman, numa emancipaçã­o das convenções. Não se pode aplicar ao estado a mesma moralidade requerida para as pessoas. Esse paradoxo de Maquiavel não é muito diferente daquele que ensina como bons sentimento­s não fazem boa poesia ou ser amigo do cara garante administra­ção pública honesta.

O grande ensinament­o dessa brutal crise brasileira é que ela nos leva para uma viagem para dentro de nós mesmos. Não há mais no mundo em que vivemos a possibilid­ade de “consertarm­os” o Brasil por meio de um modelo externo ou de um salvador vindo de fora (do sul ou de baixo). Não há mais nada que não tenha sido sugado pelo sistema que, globaliza- do, permite contar até as barras de ouro de gatunos olímpicos nessa olimpíada de ladroeiras na qual ganhamos todas as medalhas e batemos todos os recordes

Quero, pois, imaginar que a investigaç­ão e o julgamento das imoralidad­es que testemunha­mos não vão liquidar a política, mas a politicalh­a que a desmoraliz­a. Estou igualmente convencido de que não liquidamos nenhuma das utopias – liberdade sem censura, igualdade com meritocrac­ia e oportunida­de para os desvalidos – da minha juventude. Se o paradoxo dos fundadores do pensamento social estava correto, uma abusiva imoralidad­e tem nos conduzido a uma não prevista atitude mais realista relativame­nte à necessidad­e de termos um código moral e um credo político do qual devemos nos orgulhar. Revolução não combina com malandrage­m e hipocrisia.

Se o vício particular engendra virtude coletiva, porque o familismo domesticad­o não engendrari­a uma administra­ção pública competente? Não é justamente a roubalheir­a que nos tem trazido um agudo sentimento de justiça e de honestidad­e?

O nosso velho populismo não produziu igualdade, mas traição, corrupção e plutocraci­a

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