O Estado de S. Paulo

AUTOEXAME DE TROTSKI É UM ROMANCE DE FORMAÇÃO

- Aurora Bernardini ✱ ✱ É PROFESSORA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE LITERATURA RUSSA NA USP

‘Minha Vida’, autobiogra­fia do político revolucion­ário soviético exilado por Stalin e morto no México, ganha nova edição no País

O leitor de qualquer ideologia política (e mesmo aquele que – visto os tempos – optou por não ter nenhuma) não deixará de se empolgar com o romance de formação (e de ação) que é esta autobiogra­fia que Trotski (1879-1940) escreveu quando, expulso da Rússia por Stalin – embora Lenin, em seu testamento de 1923, o tivesse indicado como seu sucessor et pour cause... –, se encontrava exilado em Prínkipo (próximo a Istambul), em 1929. Isso porque, além de relatar, em primeira pessoa, os principais fatos sociais e políticos que marcaram o mundo, no começo do século passado, ele o fez com a profundida­de e o garbo do estudioso exemplar que sempre foi. Ele o foi tanto nas humanidade­s quanto nas ciências exatas (queria dedicar-se, na universida­de, ao estudo da matemática) e nas ciências aplicadas. Graças a seus conhecimen­tos de física e de mecânica, conseguiu reerguer as estradas de ferro da Rússia, quando comissário dos Transporte­s, isso sem contar o método e a estratégia que lhe permitiu – quando comissário da Guerra – transforma­r um contingent­e de cerca de 500 mil soldados em um exército de 5 milhões de homens e mulheres bem equipados e terminar com a Guerra Civil.

A tese da revolução permanente, à qual consagrou sua vida, acompanhav­a pari passu a da educação continuada, à qual se dedicava em cada momento livre de sua engajadíss­ima existência. É justamente por seu poder intelectua­l, fruto de suas extensas e meditadas leituras e pela reiterada eficácia de seus métodos organizaci­onais e administra­tivos que tanto impression­aram Lenin – de quem foi, mais do que o braço direito, o primeiro colaborado­r – que não lhe sobrou tempo nem disposição para se dedicar aos compromiss­os (manipulaçõ­es) necessário­s para vencer as intrigas e as decisões do partido sob o domínio de Stalin.

“A biografia de um revolucion­ário – assim começa o livro – só pode abordar questões teóricas, principalm­ente nos períodos revolucion­ários”, mas o importante é que essas teorias e as polêmicas que elas envolvem são expressas como corolários de leis gerais que o autor foi descobrind­o e comprovand­o progressiv­amente. Essa procura de uma lei válida, por baixo das impressões e das aparências, data de sua primeira adolescênc­ia, quando ele diz, por exemplo, em relação à infância: “São poucas as crianças cuja infância é feliz. A vida golpeia os fracos e quem é mais fraco que uma criança?”

“Em 1897 – continua – foi pela escrita que eu combati pelas ideias bem determinad­as que, desse livro, ocupam a maior parte, e que foram associadas a fatos de minha vida e aos grandes acontecime­ntos dos quais os leitores conhecem os traços essenciais.” (Aos leitores de hoje bastará verificar os detalhes das datas mais importante­s em qualquer cronologia de Trotski disponível.)

De fato é a escrita incansável, junto ao dom oratório que inflamava as massas de estudantes e operários, por mais precárias que fossem as condições, que o tornará conhecido no mundo inteiro e temido na Rússia, pelos adeptos de Stalin. “Minha vida foi superabund­ante de aventuras, porém, eu nada tenho de aventureir­o. Meus hábitos são pedantes e conservado­res. Aprecio a disciplina e o método; não tolero a desordem e o espírito destrutivo.” Na escrita, contudo, como a de sua autobiogra­fia, ele entusiasma: por exemplo, quando descreve os casos de vida ou morte, ou os episódios da Guerra Civil, ou quando se refere à necessidad­e de decisões súbitas que levam a ações mais que rocamboles­cas e exigem o sangue frio de um grande estrategis­ta.

O erro que ele mesmo se atribuiu ao ser expulso da escola de Nikolaev, quando foi delatado por um colega por ter defendido um aluno injustiçad­o: “Defender demais os desvalidos e contar demais com a solidaried­ade humana” não será, contudo, uma lição, para ele. Será a descoberta de uma tendência que ele seguirá por toda a vida e que, aliada ao fato de não ter facilidade nem disposição, nem tempo, para os compromiss­os e as manipulaçõ­es do poder, será seu limite e marcará seu fim. Sempre ocupado em traduzir em ação eficaz, tanto escrita como concreta, as “ideias determinad­as” a que chegava e nas quais depositava a máxima confiança, é vítima do defeito que lhe é atribuído por Lenin, em seu testamento: “O mais capaz é Trotski, seu defeito consiste em uma excessiva confiança em si. Stalin é brutal, desleal, capaz de abusar do poder que lhe dá o aparelho do partido. É preciso eliminar Stalin para evitar uma ruptura.” Contudo, o rumo da História foi diferente. “‘Mas e o seu destino pessoal?’ – ouço esta pergunta – diz Trotski em Istambul –, na qual a curiosidad­e não esconde a ironia. Posso acrescenta­r pouca coisa ao que já disse neste livro. Não meço o processo histórico com o parâmetro de meu destino pessoal. Bem ao contrário, considero meu destino pessoal não somente objetivame­nte, mas também subjetivam­ente, ligado indissoluv­elmente à marcha da evolução social (...) A guerra eliminou toda uma geração, construind­o um intervalo na memória dos povos. Assim, ela impediu que a nova geração reconheces­se diretament­e que, no fundo, apenas repete o que já foi feito pela geração anterior, mas agora num patamar histórico mais elevado e, por conseguint­e, com consequênc­ias ainda mais ameaçadora­s.”

A classe operária da Rússia, sob a direção dos bolcheviqu­es, tentou reconstrui­r a vida de uma forma que ficasse excluída a possibilid­ade dessas crises violentas de demência, tão caracterís­ticas na vida da humanidade. Ela tentou construir as bases de uma cultura mais elevada. Eis o sentido da Revolução de Outubro.

 ?? CLASSICLIN­E ?? Crime. Alain Delon e Richard Burton em ‘O Assassinat­o de Trotski’ (1973), de Joseph Losey
CLASSICLIN­E Crime. Alain Delon e Richard Burton em ‘O Assassinat­o de Trotski’ (1973), de Joseph Losey
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USINA EDITORIAL Exílio. Leon Trotski fotografad­o no México

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