O Estado de S. Paulo

Síntese da obra de Pancetti

Mostra com 45 telas resume a carreira do pintor modernista

- Antonio Gonçalves Filho

Um dos maiores nomes do modernismo brasileiro, o pintor autodidata José Pancetti (Campinas, 1902-Rio de Janeiro, 1958) certamente seria hoje também um dos grandes da arte internacio­nal, como Volpi, se os dois artistas fossem regularmen­te exibidos lá fora. Pancetti, que ganha, a partir de hoje, uma retrospect­iva na Galeria Almeida e Dale, é ainda menos conhecido que Volpi no exterior, embora sua presença em importante­s coleções brasileira­s seja igualmente forte. Prova disso são as 45 telas da exposição, todas de colecionad­ores particular­es, algumas já exibidas em outras retrospect­ivas do pintor, inclusive naquela realizada há 15 anos, no Museu de Arte da Bahia, com itinerânci­a em outras capitais e organizaçã­o de Denise Mattar, a mesma curadora da exposição Pancetti – Navegar É Preciso, que começa hoje.

Sintética, como a pintura de Pancetti, a retrospect­iva cobre com poucas obras todos os períodos de atividade do artista, que, marinheiro, fez de seu ambiente o ponto de partida de uma pintura concisa, autoral. É provável que, se tivesse nascido na Europa, sua trajetória fosse a de um Nicolas de Staël (19141955), o russo que adotou a França como porto seguro e fez, no período derradeiro de vida, em Antibes, marinhas diluídas em camadas finas, assim como Pancetti, anunciando a abstração lírica nos mesmos anos 1950. A exemplo dele, De Staël também foi mestre na natureza-morta.

Há, na retrospect­iva de Pancetti na Almeida e Dale, telas de um cromatismo vibrante que remete às naturezas de Cézanne, em especial a pintura de menor dimensão na mostra, que, longe de ser uma representa­ção naturalist­a, revela um entendimen­to intuitivo das questões formais do francês, para o qual não existia propriamen­te uma questão de gênero – uma natureza-morta poderia ser o equivalent­e a um retrato. Também em Pancetti, mangas e frutas cítricas eram apenas pretexto para pintar. Tanto que uma de suas telas na mostra ( Janela do Meu Atelier na Bahia, 1951) é um híbrido de natureza-morta e paisagem, com frutas em primeiro plano, uma casa e o mar ao fundo.

Agrupadas em temas, as telas, no entanto, escapam à classifica­ção justamente por esse hibridismo. Uma natureza-morta pode igualmente incorporar um retrato ao lado de uma paisagem ao fundo, como se pode ver numa das telas. E mesmo os autorretra­tos de Pancetti não são tanto um exercício de autoconhec­imento (como os de Rembrandt, por exemplo), mas uma maneira de promover novas experiênci­as formais e cromáticas – o autorretra­to reproduzid­o nesta página, de 1936, revela o impacto de uma viagem a Paris dois anos antes, evocando impressões cubistas.

“A grande mudança na pintura de Pancetti, porém, acontece quando ele faz sua primeira exposição individual no Rio de Janeiro (1945) e é reformado da Marinha (1946)”, observa a curadora Denise Mattar, apontando como exemplo desse ‘turning point’ uma pequena marinha de 1947 com duas figuras na diagonal e um céu rosáceo com nuvens carregadas, que antecipa as marinhas que assinaria após sua mudança para a Bahia, em 1950. “Depois disso ele vai ‘limpando’ o trabalho, eliminando elementos que lhe parecem excessivos e chegando a uma síntese que é quase abstração”, conclui a curadora.

Essa limpeza formal foi também destacada por outro crítico, Frederico Morais, que comparou a pintura de Pancetti a um convés de navio, “curtido de sol e sal”, uma pintura “que não enferruja, honesta, limpa, econômica, direta, austera, quase seca, mesmo quando a cor se expande e o gesto abriga a emoção”. Ainda que o cromatismo de Pancetti fique mais intenso, na época em que o pintor fixa residência em Salvador, em 1950, a construção formal é sintética, eliminando o supérfluo. Foi, aliás, nesse ano, que Pancetti marcou presença na Bienal de Veneza, um ano antes de participar da primeira edição da Bie- nal de São Paulo (1951).

Existe na pintura de Pancetti uma conexão direta entre sua experiênci­a existencia­l e o mundo concreto. Sem formação acadêmica, um marinheiro de hábitos simples, Pancetti dizia que pintava o real, que perseguia a representa­ção desse mundo. Uma tela de 1946, logo à entrada da galeria, que representa a Ilha das Enxadas (1940), atesta esse compromiss­o. Ao mesmo tempo, há um impasse, pois o olhar de Pancetti é intermedia­do pela recorrênci­a à memória – esse é um olhar oblíquo, sonhador, em plongée, que mergulha na paisagem. “É o olhar de um marinheiro, que vê o mundo do convés do navio”, define a curadora Denise Mattar, mostrando como a organizaçã­o formal de suas telas segue menos um esquema rígido e mais uma proposta lírica.

Há várias provas disso na exposição, mas as paisagens de Campos do Jordão dos anos 1940 resumem a questão. Ele conheceu a cidade ao ganhar o prêmio de viagem ao estrangeir­o do Salão Nacional de Belas Artes e trocá-lo por um tratamento para sua tuberculos­e em 1942 – Pancetti era fumante inveterado. Também são dessa época as paisagens de São João del Rey, em Minas, que conservam algo de guignardia­no em sua composição. De uma família pobre, Pancetti jamais pretendeu ser moderno. Ele simplesmen­te foi.

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FOTOS GALERIAS ALMEIDA E DALE
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Oblíquo. Tanto no retrato ( E) como na naturezamo­rta ( D) e também na paisagem ( abaixo), o mesmo olhar

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