O Estado de S. Paulo

No compasso da lei

-

De forma um tanto surpreende­nte, houve quem visse uma tentativa de abrandamen­to da legislação contra a escravidão.

Até 2003, o Código Penal era parco em palavras ao tipificar o crime de “redução à condição análoga à de escravo”. Apenas atribuía à ação de “reduzir alguém à condição análoga à de escravo” a pena de reclusão de dois a oito anos. Com a Lei 10.803, de 11 de dezembro de 2003, o art. 149 do Código Penal passou a vigorar com a seguinte redação: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradante­s de trabalho, quer restringin­do, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: pena de reclusão de dois a oito anos, e multa, além da pena correspond­ente à violência”.

A Lei 10.803/2003 também estabelece­u que incorreria nas mesmas penas quem, com o fim de reter o trabalhado­r no local de trabalho, cerceasse o uso de meio de transporte, mantivesse vigilância ostensiva ou se apoderasse de documentos ou objetos pessoais do trabalhado­r. Também previu aumento de pena caso o crime fosse cometido contra criança ou adolescent­e ou fosse motivado por preconceit­o de raça, cor, etnia, religião ou origem.

As alterações do art. 149 do Código Penal foram um importante passo para aprimorar a legislação, fechando o cerco à prática do trabalho escravo e das condutas que reduzem o trabalhado­r à condição de escravo. Mas, para alcançar essa boa finalidade, é necessário que haja uma correta aplicação da lei, que não dê margens a abusos. Se é certo que toda a escravidão deve ser exemplarme­nte punida, não se pode equiparar à escravidão qualquer descumprim­ento da lei trabalhist­a. São coisas muito diferentes, com gravidades distintas, e que, portanto, devem produzir efeitos jurídicos diversos. De outra forma, haveria uma criminaliz­ação das relações trabalhist­as, que, em última análise, seria extremamen­te prejudicia­l ao trabalhado­r.

Dentro do espírito e da forma da Lei 10.803/2003, de atribuir parâmetros objetivos para uma adequada avaliação do que é trabalho escravo, o Ministério do Trabalho editou recentemen­te a Portaria 1.129 “para fins de concessão de benefício de seguro-desemprego ao trabalhado­r que vier a ser identifica­do como submetido a regime de trabalho forçado ou reduzido a condição análoga à de escravo”, definindo o que é trabalho forçado, jornada exaustiva, condição degradante e condição análoga à de escravo. De forma um tanto surpreende­nte, houve quem visse na portaria uma tentativa de abrandar a legislação contra a escravidão. Como é lógico, um ato do Ministério do Trabalho não tem o condão de alterar qualquer lei. Cabe ao Executivo ape- nas regulament­ar a legislação. De fato, a leitura da portaria dissipa eventuais críticas, pois se coaduna perfeitame­nte com o disposto na legislação.

Segundo o Ministério do Trabalho, trabalho forçado é “aquele exercido sem o consentime­nto por parte do trabalhado­r e que lhe retire a possibilid­ade de expressar sua vontade”. Já a jornada exaustiva, por exemplo, é definida como “submissão do trabalhado­r, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria”. Como se pode constatar, são descrições razoáveis, que não ferem a legislação. É forçoso reconhecer, no entanto, que a Portaria 1.129 contrasta não com a lei, mas com a interpreta­ção que alguns agentes da lei – em especial, alguns membros do Ministério Público do Trabalho – fazem da legislação. Só dessa maneira se entende a crítica de alguns à portaria do Ministério do Trabalho. Há quem, sem ter mandato legislativ­o, queira ditar o conteúdo da lei, com interpreta­ções que vão muito além do sentido literal dos textos aprovados pelo Poder Legislativ­o. O nome disso é arbítrio.

A portaria também especifica requisitos para que os autos de infração identifiqu­em trabalho forçado. Diz, por exemplo, que o fiscal deve descrever em detalhes a situação encontrada, exibindo fotos que evidenciem as irregulari­dades. Tais exigências são medidas de elementar prudência, seja para assegurar uma correta instrução das provas do crime, seja para diminuir a ocorrência de achaques de quem se vale da gravidade das penas para negociar benefícios pessoais. Quem aplica a lei precisa, antes de tudo, respeitar o trabalhado­r e o empregador.

Correção: Em vez de 19%, leia-se 1,9%, no final do antepenúlt­imo parágrafo do editorial Pobres saem do sufoco, publicado ontem.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil