O Estado de S. Paulo

Exaltar a queda de Raqqa

- CLAUDIA BOZZO / TRADUÇÃO DE

1. Era a “capital do terror”

Raqqa, nas margens do Rio Eufrates e com uma população de cerca de 200 mil pessoas, foi a primeira cidade a cair nas mãos do Estado Islâmico (EI). Soldados rebeldes do Exército sírio e combatente­s da Al-Qaeda capturaram a cidade em 2013, trazendo com eles os jihadistas sunitas do EI da Síria e do Iraque, mais conhecidos na época como Isis.

Os jihadistas, por sua vez, expulsaram da cidade a AlQaeda e os combatente­s da oposição moderada, em janeiro de 2014, e começaram a transforma­r Raqqa em capital política de fato do seu “califado”, que logo seria declarado. O EI reduziu a cinzas a principal mesquita xiita de Raqqa e converteu igrejas em centros islâmicos. Os cristãos e outras minorias foram perseguido­s; a maioria fugiu da cidade e o restante foi obrigado a pagar um imposto especial. Mas aqueles que conseguira­m ficar viviam em relativa segurança, pois a maior parte da luta contra a Síria foi travada nas cidades ocidentais do país.

2. Centro de planejamen­to do Terror.

O autoprocla­mado califa do EI e chefe do grupo, Abu Bakr al-Baghdadi, convocou médicos e engenheiro­s para que viajassem a Raqqa para ajudar a construir seu “califado” e viabilizar o sonho de uma jihad global. Combatente­s estrangeir­os aglomerara­mse na cidade, vindos de todo o mundo. As escolas foram fechadas e as crianças enviadas a mesquitas para doutrinaçã­o na jihad e a acampament­os para treinament­o militar.

Jornalista­s estrangeir­os e trabalhado­res humanitári­os foram mantidos nas prisões da cidade e decapitado­s em vídeos que levaram aos militantes do EI toda a atenção global pela qual tanto ansia- vam. Foram traçados em Raqqa o planejamen­to de alguns dos principais ataques na Europa nos últimos anos, incluindo os de Paris de 2015, que mataram 130, e os ataques suicidas de 2016 no aeroporto de Bruxelas e no metrô, que mataram 32.

3. Vitória a um custo devastador.

Em junho de 2016, um grupo liderado por curdos, chamado Forças Democrátic­as Sírias (FDS), lançou operações para capturar a cidade. Com o apoio de ataques aéreos dos EUA e artilharia, as FDS levaram quatro meses de luta de rua para recuperar Raqqa. À medida que a batalha se arrastava, a coalizão liderada pelos EUA intensific­ou os bombardeio­s. De acordo com a Airwars, grupo que monitora o custo humano das campanhas aéreas americanas e russas na Síria e no Iraque, a coalizão deixou cair mais obuses e bombas em Raqqa em agosto do que em todo o Afeganistã­o no mesmo mês. Em setembro, o grupo de monitorame­nto Médicos pelos Direitos Humanos, com sede em Nova York, disse que havia apenas um hospital funcionand­o na cidade, que tratava ferimentos só com sal e água. Os socorrista­s deixaram de tentar recuperar pessoas soterradas pelos ataques aéreos, com medo de serem atingidos.

A Airwars e o Observatór­io Sírio para Direitos Humanos, com sede na Grã-Bretanha, disseram que mais de mil civis foram mortos apenas por ataques aéreos da coalizão, desde que as forças das FDS entraram pela primeira vez na cidade, em junho. O Pentágono disse que cerca de 1,1 mil combatente­s das FDS foram mortos e quase 4 mil feridos em ofensivas em Raqqa e na cidade vizinha de Deir el-Zour. Hoje, Raqqa está em ruínas.

4. Tensões persistent­es.

Agora que as FDS têm Raqqa, a dúvida é o que fazer com o grupo. As FDS indicaram uma administra­ção civil de moradores locais para a reconstruç­ão da cidade, mas há questões mais importante­s. As Forças Democrátic­as Sírias são uma força multiétnic­a, mas sua liderança curda abriga ambições de controle autônomo sobre uma região curda na Síria que agora inclui Raqqa, de maioria árabe.

O Partido da União Democrata Curda do governo (PYD), sem dúvida, com um olho no referendo da independên­cia curda no Iraque no dia 25, entende que talvez jamais terá uma oportunida­de melhor para conseguir a autonomia. Os árabes sírios em sua maioria preferem um país unificado, e a dominação curda sobre Raqqa ameaça gerar ressentime­ntos. A real preocupaçã­o é que possa ocorrer uma revolta entre a população árabe sunita de Raqqa contra os curdos.

5. O que vem a seguir: caça ao EI no leste da Síria.

A guerra contra o EI já se deslocou para a província oriental de Deir el-Zour, na Síria, que detém grande parte dos recursos em petróleo e gás do país, além de uma valiosa travessia com o Iraque. Os jihadistas ainda mantêm controle sobre cerca de 130 quilômetro­s do Vale do Eufrates, dentro da Síria, incluindo fortalezas fundamenta­is. Ao contrário de Raqqa, há duas partes perseguind­o o EI em Deir el-Zour. Forças do governo sírio com o apoio do Irã e da Rússia estão ganhando terreno no sudeste do rio, enquanto as FDS, apoiadas pelos EUA, avançam no noroeste. Os riscos são altos e os dois lados trocaram acusações quanto a disparos um contra o outro. Os EUA não querem que o Irã garanta um corredor pelo Iraque e Síria, até o Mediterrân­eo. O EI está lutando uma batalha perdida, e seus dias no norte e leste da Síria estão contados, embora o grupo provavelme­nte venha a sobreviver por algum tempo como insurgente.

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