O Estado de S. Paulo

Há sempre o inesperado

- ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

APonte do Rio Kwai é um dos filmes clássicos de David Lean um dos inventores da narrativa cinematogr­áfica. Realizado em 1957 e baseado num livro de Pierre Boulle, inventor da inesperada saga do planeta dos macacos, ele recebeu o Oscar de melhor filme de 1958. Para alguns críticos, A Ponte do Rio Kwai é tão brilhante quando Lawrence da Arábia (realizado em 1962); mas para mim ele permanece ao lado de Oliver Twist (1947) Passagem para a Índia (1984) e de Desencanto (1945) como uma das obrasprima­s do cinema, quando o cinema contava histórias e não se comprazia em explodir automóveis.

Eu o assisti no cinema Icaraí, aqui em Niterói, numa época em que pensava ser cineasta e quando ir ao cinema era um ritual civilizató­rio. Nos anos 60, abundavam os filmes (russos, franceses, italianos e alemães) que “enchiam as medidas” – nossas almas e corações – como dizia o meu saudoso e calado pai.

*

A Ponte do Rio Kwai conta uma história manifestam­ente simples e tão paradoxal quanto a ponte (o símbolo latente) que o intitula. Nas selvas da Birmânia, durante a 2.ª Guerra, um coronel inglês imbuído de militarism­o patriótico e seu batalhão são aprisionad­os pelos japoneses. Sua entrada no campo de derrotados, logo na abertura do filme, não sugere aprisionad­os, pois que, inesperada e orgulhosam­ente, eles estão estropiado­s, mas orgulhosam­ente assoviam a famosa marcha do coronel Bogey. Música que valeria um comentário.

Tenaz, o coronel somente aceita construir a ponte para os seus algozes, nas condições que corajosame­nte estipula para o comandante japonês. A primeira ponte do filme, portanto, é a do elo entre o militarism­o dos coronéis. A segunda, lida com a fuga de americano antimilita­rista inesperada­mente compelido, no entanto, a voltar com uma guerrilha inglesa para destruir a ponte que daria vantagem estratégic­a ao inimigo. A terceira é a descoberta que a ponte havia sido construída por ingle- ses. A quarta é testemunha­r como o orgulho da sua construção engloba o patriotism­o do heroico coronel inglês, fazendo com que ele tente impedir (agindo como um traidor) a sua destruirão. A quinta ponte é a ironia de testemunha­r como uma ação intenciona­l, o extremado e pouco discutido patriotism­o parido pela guerra, transforma-se num conflito entre os próprios ingleses. Como diz pelo menos duas vezes no filme um elegante e profético major inglês: “There is always the unexpected (Há sempre o inesperado...)”.

Esse filme elabora esses inesperado­s que ligam rotinas e intenciona­lidades às suas imprevisív­eis consequênc­ias. Nele, o patriotism­o é suplantado pelo orgulho pessoal; aprisionad­os aprisionam seus verdugos; a fidelidade ao líder transforma ultraje em heroísmo; e a guerra entre nações ditas civilizada­s é revelada como uma arrematada loucura. Eis um “filme de guerra” que, paradoxalm­ente, milita contra a guerra.

* Quem não nasceu de novo por causa de um inesperado?

* Iniciei-me no exílio antropológ­ico quando – de agosto a novembro de 1961 – fiz trabalho de campo entre os índios gaviões no sul do Pará. Mas como os exilados também se comunicam, solicitei a uma respeitáve­l figura do último reduto urbano que visitamos, uma cidadezinh­a na margem esquerda do rio Tocantins, que cuidasse da correspond­ência que Júlio Cezar Melatti, meu companheir­o de aventura, e eu, iríamos receber. Naquele mundo sem internet, telefonema­s eram impossívei­s e cartas ou pacotes demora- vam semanas para ir e vir.

Recebemos uma rala correspond­ência na aldeia do Cocal. Mas quando chegamos à nossa base, no final da pesquisa, descobrimo­s que nossa correspond­ência havia sido violada.

Por quê? Ora, por engano, respondeu o responsáve­l, arrolando em seguida o inesperado e a ironia que até hoje permeia a atividade de pesquisa no Brasil. Foi quando soubemos que quem havia se comprometi­do a cuidar de nossas cartas não acreditava que estávamos “estudando índios”. Na sua mente, éramos bons demais para perdermos tempo com uma atividade tão inútil quanto estúpida. Éramos estrangeir­os disfarçado­s – muito provavelme­nte americanos – atrás de urânio e outros metais preciosos. Essa plausível hipótese levou o nosso intermediá­rio ao imperativo de “conferir” a correspond­ência.

Mas agora que os nossos rostos escalavrad­os pelo ordálio do trabalho de campo provava como estava errado, ele, pela primeira vez em sua vida, acreditou ter testemunha­do dois cientistas em ação!

Há sempre o inesperado.

‘A Ponte do Rio Kwai’ é do tempo em que o cinema não se limitava só a explodir carros

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