O Estado de S. Paulo

O local, o nacional e o universal

- LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Minha cidade natal, São Leopoldo (RS), era um município grande no século 19. Por motivos variados, grandes porções do seu território foram se emancipand­o e originando outros centros autônomos como Novo Hamburgo, Campo Bom ou Sapucaia do Sul. Origem das secessões? Vontade de uma administra­ção mais próxima dos moradores, punição de um governo estadual contra a cidade, sentimento­s locais e interesses de políticos. Em comum, pelo menos para a maioria da população, havia a ideia de que a ruptura com o centro original e a formação de um novo agrupament­o dariam início a uma era melhor e mais próspera.

Ocorreu o mesmo quando São Paulo perdeu áreas sob controle bandeirant­e, como as Minas Gerais ou o Paraná. A divisão, no caso, atendia interesses de um governo externo aos paulistas que encontrava eco em demandas locais. Pernam- buco foi outra área colonial afetada por perdas territoria­is punitivas.

Eu vi surgir Mato Grosso do Sul. Depois emergiu Tocantins. Minha geração testemunho­u território­s federais virarem Estados autônomos, como Roraima e Rondônia. Nosso paraíso insular, Fernando de Noronha, mudou seu status para integrar-se a Pernambuco. É irônico imaginar que podemos testemunha­r a federaliza­ção de Estados como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, por insolvênci­a.

Por vezes, uma área mais rica e desenvolvi­da de uma nação quer a independên­cia. Os dados econômicos reforçam a ideia política e cultural de que a região mais avançada está sendo explorada e “carregando” outras nas costas do seu esforço. Desigualda­de econômica é solo fértil para discursos racistas. O Norte da Itália pensa em formar uma liga de lombardos sem a porção meridional. A Bélgica, país mais novo do que o Brasil, sofre uma cisão interna e eterna entre duas lín- guas e dois modelos culturais.

Quase sempre a discussão é econômica. Também ocorre de ser mais cultural-linguístic­a, como o sentimento do Quebec em relação ao resto do Canadá. Muitos corsos não se consideram franceses de fato, como muitos franceses rejeitavam a identidade do mais famoso filho da Córsega, Napoleão Bonaparte. O Sudão do Sul separou-se em plena e retumbante pobreza. Timor Leste lutou contra Portugal e, depois, contra a Indonésia para garantir sua autonomia. É uma das nações do século 21.

O Brasil tomou o Uruguai sob o governo do príncipe d. João. A crise nascera na Europa: Napoleão havia invadido a Espanha. A esposa do príncipe português era espanhola e a vingança foi atacar a Guiana Francesa e o Uruguai. Reforçava-se velho sonho colonial iniciado com a fundação da colônia de Sacramento: trazer para o controle lusitano uma das margens do Rio da Prata. Sob d. Pedro I, perdemos a província da Cisplatina. Feliz derrota: poderíamos ter hoje um território com outra língua lutando contra a tirania de Brasília. Poderia ser um “país basco platino” com possíveis atentados no horizonte.

O tema do momento é a Espanha. A formação do Estado espanhol sob os reis católicos no século 15 não apagou diferenças culturais e linguístic­as. O reino de Aragão englobava a atual Catalunha. O casamento de Fernando de Aragão com Isabel de Castela, em 1469, integrou as duas coroas. Quando a soberana católica morreu, em 1504, seu marido governou sozinho por um tempo. De alguma forma, o rei aragonês-“catalão” controlava Castela, como um dia o Paraguai invadiu o Brasil e o Tibete atacou a China. A história é dinâmica.

A integração com casamentos e acordos foi sendo forjada com visíveis sinais de fraturas. Joana, Carlos V, Filipe II e outros diminuíram liberdades locais. Apenas no século 19 podemos falar, de fato, em nacionalis­mo. Havia identidade­s e busca de liberdades políticas e econômicas locais. Cada rei que assumia em Madri ou no Escorial fazia juramentos em cortes locais de respeitar tradições regionalis­tas. Quase sempre isso era desrespeit­ado.

Em 1640, rebeldes catalães quiseram aproveitar um momento de fraqueza do império espanhol e declararam guerra aberta. Perderam a luta contra Filipe IV. No século seguinte, um novo rei, Filipe V, reprimiu ainda mais as liberdades locais. Punindo a Catalunha pelo apoio ao “lado errado” na guerra da Sucessão Espanhola, invadiu e tomou Barcelona, eliminando quase todas as veleidades de autonomia. Entre 1713 e 1714, a orgulhosa Barcelona foi sub- metida ao poder centraliza­dor da nova dinastia dos Bourbons.

A ditadura de Francisco Franco apertou ainda mais o anel de ferro sobre os regionalis­mos. Línguas, danças e expressões locais foram reprimidas. Foi um enorme esforço de castelhani­zação da península.

Era lógico imaginar que a abertura pós-morte de Franco liberaria os sentimento­s de identidade local. Senti isso como: a cada nova ida a Barcelona mais gente falava catalão e menos pessoas utilizavam o espanhol. A bandeira catalã se multiplico­u pelas sacadas de Barcelona.

Se a união não ocultava rupturas na prosperida­de espanhola recente, na crise econômica que se seguiu ela sofreu fratura exposta. A região catalã é fundamenta­l na economia espanhola.

O atual rei Filipe VI (neto do conde de Barcelona) fez pronunciam­ento duro contra o separatism­o catalão. O povo de Gaudí não gosta dos pronunciam­entos dos Filipes, seja o IV, V ou VI. A Europa tem quase 40 regiões gritando por secessão. Corsos, escoceses, lombardos e gente do Cáucaso olham para as torres da Sagrada Família com esperança profética. O local e o regional estão em alta novamente. Talvez o mapa mude. É uma hipótese. Muito sangue vai correr pelo nacionalis­mo. É uma certeza. Boa semana para todos nós no nosso talvez unido Brasil.

A Europa tem quase 40 regiões gritando por secessão. Talvez o mapa mude

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