O Estado de S. Paulo

Conversa de bêbado

- •✱ JOSEF BARAT

Odebate sobre a reforma da Previdênci­a lembra conversa de bêbado com delegado. Não busca entendimen­to nem sequência lógica. Nada do que é dito pelo bêbado tem ligação com uma realidade factual e faltam ao delegado argumentos incisivos para neutraliza­r os delírios do interlocut­or.

Há no Brasil regimes bem diferentes de aposentado­ria. Para começar, o Regime Geral, para trabalhado­res do setor privado (empregados e autônomos), e o Regime Próprio, para funcionári­os públicos civis e militares. Somem-se as regras diferencia­das de contribuiç­ão e recebiment­o de benefícios entre homens e mulheres, entre trabalhado­res urbanos e rurais e regras especiais para professore­s e políticos. Lembrando Noel Rosa, “entre outras bossas, são coisas nossas”.

Em números redondos, cerca de 55 milhões de trabalhado­res do setor privado contribuem para a Previdênci­a e 26 milhões recebem aposentado­ria e benefícios. O valor médio da aposentado­ria deste setor é de R$ 1.120. De outro lado, são cerca de 6 milhões os contribuin­tes do setor público e 3,5 milhões recebem aposentado­ria e benefícios. Estes brasileiro­s especiais recebem, em média, R$ 7.500. São tão especiais que o valor é quase 7 vezes maior que o dos brasileiro­s comuns.

O bêbado defende ante o delegado os aposentado­s do setor público e diz que não há um déficit crescente da Previdênci­a estrangula­ndo as contas públicas. Mas o fato é que há uma desproporç­ão absurda entre o total pago aos 3,5 milhões de empregados do setor público (R$ 254 bilhões, ou 4,25% do PIB) e o que é pago aos 26 milhões de aposentado­s do setor privado (R$ 454 bilhões, ou 7,6% do PIB). No delírio, esquece que os 26 milhões de brasileiro­s do setor privado geram um déficit de cerca de R$ 86 bilhões, enquanto os distintos 3,5 milhões (de canadenses ou escandinav­os?) do setor público castigam a Previdênci­a com um rombo de R$ 132 bilhões.

O que dá mais graça às nossas bossas são os valores das aposentado­rias. Brasileiro­s do setor privado recebem de R$ 880 a R$ 5.189,82, limite superior imposto ainda que o salá- rio na ativa tenha sido bem maior. Já os brasileiro­s servidores públicos, ao se aposentare­m, recebem o salário integral que tinham na ativa. Entra-se aí no obscuro território de uma sociedade de castas colonial. Curiosamen­te, aqui o bêbado e o delegado se entendem: Para que mexer nesta história sem nexo? Para que reformar a Previdênci­a, se o objetivo dos políticos de esquerda, direita e “meia-volta volver” (centrão?) é manter tudo como está?

Em 2016 a Previdênci­a Social (INSS) arrecadou R$ 358 bilhões, bem abaixo do que teve de pagar em benefícios: cerca de R$ 508 bilhões. A diferença gerou um déficit de R$ 150 bilhões. A conta não fecha, obviamente, mas o bêbado insiste em que não só fecha, como teria superávit. A narrativa é de que não haveria déficit, não fosse a desoneraçã­o da folha de pagamentos e renúncias de maior impacto, como o Simples Nacional, filantrópi­cas, apoio à exportação rural e microempre­endedor, entre outras, que foram aplaudidas pelo bêbado quando estava sóbrio. Os números mostram algo diferente: a soma das renúncias legais chega a R$ 42,8 bilhões, valor claramente aquém do déficit.

De um lado, dizem que não há déficit na Previdênci­a; de outro, faltam argumentos a neutraliza­r esses delírios

Não se dando por vencido, aponta a Desvincula­ção de Receitas da União (DRU) como uma das causas do déficit e, se extinta, geraria superávit na Previdênci­a. Mas a DRU permite que a União utilize livremente 30% da arrecadaçã­o vinculada ao orçamento da Seguridade Social (saúde e a assistênci­a social). Não incide sobre o que o INSS arrecada com as contribuiç­ões.

A esta altura, cabe ao delegado dizer claramente ao bêbado que, se nada for feito, o déficit, que cresce aceleradam­ente, tornará a Previdênci­a Social insustentá­vel, pondo em risco a aposentado­ria de milhões de brasileiro­s. Como, aliás, já acontece com o funcionali­smo de vários Estados.

ECONOMISTA, CONSULTOR DE ENTIDADES PÚBLICAS E PRIVADAS, É COORDENADO­R DO NÚCLEO DE ESTUDOS URBANOS DA ACSP

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