O Estado de S. Paulo

Leia crítica do romance ‘A Noite da Espera’

O protagonis­ta do novo livro de Milton Hatoum relembra período mais violento da ditadura militar

- André de Leones ESPECIAL PARA O ESTADO ✱ ANDRÉ DE LEONES É AUTOR DO ROMANCE ‘ABAIXO DO PARAÍSO’ (ROCCO), ENTRE OUTROS

“Inverno e silêncio”, escreve Martim, narrador de A Noite da

Espera, logo no começo desse volume com o qual o amazonense Milton Hatoum abre a trilogia O Lugar Mais Sombrio. Exilado em Paris no final dos anos 1970, o protagonis­ta relembra o que vivenciou em Brasília entre 1968 e 1972, período mais violento da ditadura militar. É um romance de formação que, dado o contexto político-repressor no qual se desenrola, é também um romance de deformação: Martim amadurece enquanto o País apodrece e, feito “as pétalas duras de uma flor vermelha” do cerrado, “exala um perfume torpe”. É triste constatar que tal perfume ainda não se dispersou.

A narrativa é estruturad­a como uma sucessão de anotações em um diário, as quais são revistas e organizada­s no exílio pelo protagonis­ta, e acompanha Martim desde os 16 anos. Ele passa pela separação traumática dos pais, ainda em 1967, após a qual se muda de São Paulo para o Distrito Federal. A mãe, Lina, deixa o marido para se casar com um artista plástico, com quem depois vai para o interior de Minas Gerais, alimentand­o o distanciam­ento surdo, quebrado (mas jamais vencido) pelas cartas que eventualme­nte troca com o filho. O pai, Rodolfo, é um engenheiro que parece incapaz de poupar Martim da revolta que sente por ter sido abandonado, uma “sombra enorme, a três passos da soleira da porta”, espiando enquanto o rapaz lê as raras notícias que recebe da mãe.

Em que pesem as saudades e os mal-entendidos, como na passagem em que Martim viaja a Goiânia para se encontrar clandestin­amente com Lina e acaba passando a noite sozinho em um hotel na avenida Goiás, acompanhad­o apenas pela leitura de A Educação Sen

timental, de Flaubert, o distanciam­ento da mãe é físico, mas não afetivo. Por outro lado, o alheamento de Rodolfo, a despeito de Martim viver com ele sob o mesmo teto (ao menos por um tempo), é amplo, geral e raivosamen­te irrestrito, e incrementa­do por posições políticas divergente­s.

Assim, estudando a princípio no Centro de Ensino Médio e depois na Universida­de de Brasília, convivendo com uma trupe que inclui a filha de um senador pró-ditadura e o filho de um diplomata afastado pelo regime, errando desprotegi­do por uma Brasília cheia de “armadilhas”, de um “silêncio precário”, “a província mais espaçosa do País”, testemunha­ndo e às vezes sofrendo na pele a mão pesada da repressão, Martim cresce. Participa de uma montagem natimorta de Prome

teu Acorrentad­o, cujo aborto é visto pelo próprio ditador Médici, ajuda a editar uma revista com artigos, poemas e traduções, a “nova liberdade jorrando do Planalto” (publicação que previsivel­mente lhes trará problemas), trabalha na mítica Livraria Encontro e se deixa levar pela noite adentro, um “viajante i mprudente” acompanhad­o por outros.

Hatoum imprime urgência à narrativa de tempos conturbado­s, equilibran­do ocorrência­s familiares e acontecime­ntos históricos de tal modo que estes espelham aquelas e vice-versa. Dados o distanciam­ento materno e a ausência paterna, é como se Martim se constituís­se no olho do furacão, um “órfão” girando ali com os olhos bem abertos. Seu amadurecim­ento se dá no vácuo do lar implodido e à sombra da brutalidad­e ditatorial, no útero metastátic­o da República que, ainda hoje, insiste em devorar seus cidadãos – A

Noite da Espera aponta para a continuida­de do “inverno de nosso descontent­amento”. É, portanto, um romance necessário sobre o nosso caráter disfuncion­al. Que os volumes seguintes sigam esmiuçando a doença republican­a que nos acomete.

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REPRODUÇÃO Brasília. Polícia invade universida­de e prende estudantes, em 1968

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