O Estado de S. Paulo

Weiwei e a arte de focar no humano

O artista chinês diz que ‘Human Flow’ é sobre a crise do planeta

- Luiz Carlos Merten

Seus últimos dois dias haviam sido estressant­es. Na terça à noite, 17, Ai Weiwei tentou embarcar de Nova York para o Brasil – São Paulo –, mas a atendente da United Airlines contestou a validade de seu visto e ele não conseguiu embarcar. Na quarta, quando a 41.ª Mostra estava começando, ele embarcou. Chegou em Guarulhos e correu para a coletiva de imprensa. À tarde, deu algumas individuai­s. O homem sentado à frente do repórter é a calma em pessoa. Como ele consegue...? “Acredito nas pessoas e não utilizo os contratemp­os para criar inimigos imaginário­s nem me queixar. Essas coisas acontecem. O importante é não se estressar.”

Ai ‘Ueiuei’ – ele próprio esclarece a pronúncia certa – criou o cartaz da Mostra deste ano. Seu longa Human Flow foi o que abriu o evento. A simples escolha do filme já equivaleu a uma tomada de posição da curadora (e diretora) da Mostra, Renata de Almeida. Human Flow, com o subtítulo de Não Existe Lar Se não Existe para Onde Ir, aborda uma das mais viscerais questões da atualidade – a tragédia dos refugiados. Mas Weiwei não vê seu filme dessa maneira – “Para mim, a questão é muito mais vasta. O que temos de discutir é uma questão muito mais abrangente, a própria sobrevivên­cia do planeta. Ignorar os refugiados, o direito de ir e vir, ignorar toda a agressão ao meio ambiente, tudo está conectado e configura a crise imensa que vivemos.”

Enquanto espera para falar com Weiwei, o repórter assiste pela TV a uma troca de desaforos entre o presidente Donald Trump e o ‘líder iraniano’, como é identifica­do (sem nome) pela emissora dos EUA. O dirigente iraniano termina chamando Donald Trump de ‘vulgar man’, homem vulgar. Weiwei comenta. “O grande problema é o excesso de poder conferido a essas pessoas. Se cada um tivesse mais noção de sua pequenez no universo as coisas seriam diferentes.” Tudo bem, Human Flow pode não ser sobre refugiados, mas também é sobre eles. Consideran­do-

se a história de Ai Weiwei, seus problemas com as autoridade­s chinesas, não é muito difícil entender por que, ou de que forma, o tema o toca. Será? “Quando me perguntam o porquê desse filme, nunca sei direito o que responder. O processo criativo nem

sempre é claro, ou raramente é uma coisa consciente. A inspiração vem, você faz e só depois consegue racionaliz­ar. Acho que tem a ver com a emoção, o sentimento. Você dá-se conta de como todas essas pessoas, e são milhões no mundo todo, estão sen-

do humilhadas, vilipendia­das. Se tem uma consciênci­a, começa a reagir a esse estado de coisas.”

Outra confissão que pode surpreende­r. Weiwei não consegue se ver como um cineasta. “Sou um pouco mais que isso. Faço muita coisa, você sabe. Muita coisa visual, um tanto de comunicaçã­o verbal e tudo isso ligado a uma preocupaçã­o crítica com a mídia social.” Human Flow segue os refugiados na Europa, África, na fronteira mexicana. Sobre as imagens, Weiwei imprime muita coisa escrita – dados estatístic­os, poemas. “É uma tradição da arte chinesa. Você encontra muita coisa escrita com as imagens.” Num conjunto algo discutível, as mais belas imagens de Human Flow são tomadas aéreas com drones. “Queria esse ângulo do pássaro voando. A pobre humanidade vista do alto.” O repórter conta que há um filme brasileiro – Exodus, de Hank Levine – que parte dos indivíduos para tentar chegar ao todo dessa tragédia. Weiwei vai na contramão. Busca o macro e não chega a individual­izar seus personagen­s. “É muita gente, muito sofrimento”, resume.

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DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO Reflexão. “Temos de discutir a própria sobrevivên­cia do planeta”

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