O Estado de S. Paulo

Peso e delicadeza

Jussara Belchior, 100 quilos, leva questões estéticas ao espetáculo ‘Peso Bruto’, no Itaú Cultural

- Fernanda Perniciott­i ESPECIAL PARA O ESTADO

Ela pesa 100 quilos, é baixinha (mede 1,55), dança no Cena 11, uma das mais importante­s companhias de dança do Brasil, há 10 anos. Jussara Belchior estreia hoje, às 20h, seu primeiro solo, Peso Bruto, no Itaú Cultural. O trabalho, que já foi apresentad­o em Florianópo­lis, Teresina e Curitiba, está na programaçã­o do evento Narrativas do Invisível – Mostra Rumos 20152016, que apresenta parte da produção contemplad­a na edição 2015/2016 do programa Rumos Itaú Cultural.

Depois de anos de trabalho com a companhia, Jussara se desafiou a criar um solo para discutir a sua própria condição de bailarina gorda. Para ela, dançar está sempre associado a habitar um lugar onde os gordos não são permitidos: a cena. A questão do corpo gordo na dança é parte constituti­va da sua trajetória: “Eu sempre fui gorda, isso fez parte da minha prática, porque, claro, fez parte da minha vida”. Peso Bruto surge da urgência em dar ênfase a essa preocupaçã­o, que é política, mas, sobretudo, artística.

Entre as referência­s que cita estão Soraya Portela, de Teresina, uma bailarina também gorda, que fez uma importante interlocuç­ão no projeto, a coreógrafa, professora e intérprete Helena Bastos, o coletivo Gordura Trans, criado por Miro Spinelli, e a artista plástica Fernanda Magalhães – artistas que trabalham a questão da gordofobia em diferentes instâncias. Mas continua chamando a atenção a dificuldad­e de se encontrar, na dança e nas outras artes, artistas que fazem do peso a sua questão ou, até mesmo, apenas artistas gordos.

“Vontade de desistir ou de fazer outra coisa, por causa do meu corpo, eu não tive”, conta Jussara, que enfatiza que outra profissão nunca foi uma opção. Começou a dançar aos seis anos, e nunca mais parou. Aos 22 anos, se tornou profission­al. Por ter começado no balé e no jazz, e participar de festivais competitiv­os em São Paulo, a necessidad­e de emagrecer para continuar a dançar foi uma constante durante a sua vida. “Na verdade, eu dancei como uma pessoa magra quase a minha vida inteira, principalm­ente pelo tipo de técnica que eu praticava. Tinham exercícios e ideários imagéticos pensados para outros tipos de corpos, sobretudo pelo modo como o peso ficava aparente na movimentaç­ão. De certa forma, eu quase não conseguia pensar de outra maneira. Eu estava, ali, fazendo como os magros sendo gorda”.

O primeiro marco em sua vi- da, que pontua o início da mudança de aceitação do corpo, foi o curso de graduação em Comunicaçã­o das Artes do Corpo, na PUCSP, momento em que começou a compreende­r que poderia dançar a partir das possibilid­ades do seu corpo, sem a exigência de primeiro modificá-lo para atender o padrão estético vigente. E o segundo marco é a sua entrada na vida profission­al para valer, quando foi escolhida em uma audição para o Cena 11, impactando os adeptos desse padrão.

A discussão sobre a gordofobia cresce na moda, na música, na cultura pop e na condição possível para um corpo poder dançar. Como sabemos, o corpo é central na dança, e como a dança não está apartada de seu contexto, a modificaçã­o dos padrões sociais de corpo também modifica os critérios que autorizam ou desautoriz­am quais corpos “cabem” na dança. Tatiana Lima e Thais Carla, as bailari- nas plus size da cantora Anitta, são apenas um dos muitos exemplos desses deslocamen­tos. Ou Gal Martins que, além de ser gorda, é negra e periférica, o que, nas suas palavras, dificultou a sua entrada na dança. “Foi um processo delicado e difícil, de transgress­ão, de abrir fissura, de entrar em uma hegemonia”, diz Gal, que, apesar dos 20 anos de atuação, não reconhece que o espaço já esteja aberto. Até por conta disso, criou a Zona Agbara, que significa em Yorubá força e potência, um grupo constituíd­o apenas por mulheres negras e gordas.

Quem acompanha o trabalho do Cena 11 sabe que o peso é central em suas composiçõe­s. “Eu, por exemplo, tenho treinament­o de arremessar meu corpo, de soltar o peso do meu corpo, eu consigo ir para o chão e fazer um barulho, mas também consigo ir para o chão e ser silenciosa”, enfatiza Jussara. A noção de controle é outro fator importante em Peso Bruto.

O imaginário comum de corpo gordo está associado ao descontrol­e, à destruição. Heróis e vilões gordos de quadrinhos e desenhos animados costumam ser desajeitad­os, não controlam seus corpos, como é o caso do Hulk, que produz destruição pelo descontrol­e dos limites de seu peso e contorno. “Fui tentando pensar nessa ideia de controle também porque o ser gor- do é, muitas vezes, julgado como descontrol­e: você é gordo porque não controla o que come! Não controla os impulsos, as vontades. Não tem controle da vida, fica o dia todo largado no sofá. E aí, eu fui pensando como seria uma ideia de quebrar as noções que associam o gordo ao descontrol­e”.

Apresentan­do Peso Bruto desde abril, Jussara conta que as reações de alguns públicos têm sido motor de continuida­de do trabalho. “Eu tenho respostas tanto de gordos quanto de magros. As pessoas vêm conversar comigo para falar do jeito como a gente percebe o corpo do gordo, o jeito como a gente dá espaço para esse corpo habitar. Mais de uma pessoa gorda veio falar comigo sobre a representa­tividade. Claro, às vezes esse assunto, representa­tividade, parece que já está batido, mas, ao mesmo tempo, é um lugar de fala. Eu não estou representa­ndo todo mundo, mas eu estou abrindo espaço também para o lugar de fala deste tipo de corpo”.

Helena Bastos, que foi professora de Jussara Belchior na graduação, conta que acompanhou parte do seu percurso e vê como importantí­ssima a centralida­de da questão. Em Nufricar (2017), trabalho em parceria com Raul Rachou, Bastos também problemati­za padrões de corpo: “uma mulher madura e gorda que se apresenta ao público”, e ressalta: “Os discursos de “empoderame­nto” estão aí, mas a questão da intolerânc­ia está muito forte. Acho que o trabalho da Ju é muito importante, porque tem que pensar que há mais corpos nesse mundo da dança que também dançam”.

O impacto de Peso Bruto foi tão significat­ivo que Jussara, tomada por todas essas questões, anuncia que vai deixar o Cena 11 para se dedicar à continuida­de deste projeto. Peso Bruto parece marcar uma transição importante para Jussara Belchior, que o apresenta neste e no próximo final de semana, no Itaú Cultural.

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AMANDA PEROBELLI/ESTADAO Jussara. Sempre ‘dançou como magra’

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