O Estado de S. Paulo

Desmoraliz­ação

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Em maio do ano passado, veio a público o teor de um diálogo entre o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado e o então ministro do Planejamen­to, Romero Jucá, em que este diz àquele que era preciso “mudar o governo para estancar essa sangria”. A frase, gravada dois meses antes, quando ainda se debatia o impeachmen­t da presidente Dilma Rousseff, causou o afastament­o de Jucá do governo interino de Michel Temer e, interpreta­da na ocasião como expressão da ânsia de conter as investigaç­ões da Lava Jato, tornou-se símbolo da articulaçã­o dos políticos para sabotar os esforços da luta contra a corrupção. No dia 10 passado, um ano e cinco meses depois da abertura do inquérito para apurar o escândalo, o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin determinou o arquivamen­to do caso, em razão da “ausência de provas suficiente­s de prática delitiva”.

Todo esse episódio, do início ao fim, expõe a desmoraliz­ação a que se arriscam a Lava Jato e todas as demais iniciativa­s do combate à corrupção quando se deixam seduzir pelo caminho fácil da irresponsa­bilidade. Em lugar de se produzirem provas para sustentar as denúncias, produzem-se manchetes sensaciona­is envolvendo o mais alto escalão da República, o que resulta em uma espécie de antecipaçã­o da pena ao prejudicar a carreira política de alguns dos envolvidos – e isso parece bastar para satisfazer os projetos messiânico­s de certos setores do Judiciário e do Ministério Público.

Foi assim, por exemplo, que o empresário Joesley Batista, ciente de que passaria um bom tempo na cadeia por uma série de crimes, resolveu grampear o presidente Michel Temer para arrancar dele algumas palavras e frases que, lidas com os olhos de quem quer ver corrupção em todo canto, poderiam implicá-lo em robusto escândalo. Desse modo, ao que parece já devidament­e orientado por gente de dentro da Procurador­ia-Geral da República, o astuto empresário sabia que tinha fabricado algo suficiente­mente bombástico para justificar a tão desejada impunidade. Nas denúncias que a Procurador­ia-Geral apresentou contra Temer, não há um fiapo de prova, apenas um esforço para encaixar as palavras do presidente na narrativa sobre a degradação geral da política.

Mas o pioneiro desse mau procedimen­to foi Sérgio Machado. Ele mesmo bastante encalacrad­o na Justiça, tratou de grampear diversos políticos na tentativa de levá-los a dizer qualquer coisa que pudesse ser lida como evidência de corrupção ou de tramoia contra a Lava Jato. É evidente que se tratou de forjado flagrante, mas, para os propósitos dos cruzados anticorrup­ção, os fins parecem justificar os meios.

Como se isso não bastasse, os diálogos foram vazados para a imprensa, gerando imensos estragos para os que não tinham como se defender, pois não eram considerad­os formalment­e réus. Não se trata, é óbvio, de advogar em favor dos personagen­s envolvidos – entre os quais figuram os notórios Romero Jucá, Renan Calheiros e José Sarney –, mas sim de relembrar aspectos comezinhos do Estado de Direito, como a presunção da inocência e o devido processo legal.

Nada disso foi levado em conta tanto no caso de Sérgio Machado como no de Joesley Batista, com prejuízos não somente para os denunciado­s, mas para todo o País, pois se estimulou ainda mais o desencanto dos brasileiro­s com a política. Com isso ganharam os delatores, devidament­e premiados, e também os verdadeiro­s corruptos, que lucraram com a confusão causada por denúncias sem lastro.

Está claro, assim, que o problema é o método. Na antiga Inquisição, tinha alguma chance de se salvar da fogueira o infeliz que dissesse exatamente o que o inquisidor esperava ouvir. Hoje, dispensou-se o garrote vil, mas o espírito desse expediente parece resistir ao tempo: para alguns procurador­es, basta que o candidato a delator ligue a palavra “propina” à palavra “político” para que ganhe um prêmio e seu depoimento seja aceito como prova. Assim como na Inquisição, essa prática nada tem a ver com a justa aplicação da lei.

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