O Estado de S. Paulo

‘O Congresso pode pôr tudo abaixo em uma madrugada’

Deltan Dallagnol, procurador da República e coordenado­r da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba

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“O grupo de agentes públicos não avançou sozinho, mas com a sociedade. O desafio é manter o apoio da sociedade

(à Operação Lava Jato).”

É impossível prever o que acontecerá

(com a Lava Jato)

porque depende de um fator que ninguém controla: a sociedade.”

A virtude da Lava Jato é também sua maldição, pois o sistema político concentra o maior poder da República, no Congresso.”

A caminho do quinto ano, a Lava Jato se aproxima ou se distancia da Mãos Limpas da Itália? Há semelhança­s e diferenças relevantes. Na década de 90, a Mãos Limpas revelou que a corrupção política na Itália estava por todos os lados. A Lava Jato revelou inicialmen­te um esquema gravíssimo na Petrobrás, mas seu avanço recente acabou por trazer à tona um monstro ainda mais assustador: esquemas semelhante­s espalhados em órgãos federais, estaduais e municipais. Partidos e políticos no Brasil, como na Itália da Mãos Limpas, colocam no comando dos órgãos pessoas com a missão de arrecadar suborno. A virtude dessas operações foi um amplo diagnóstic­o da podridão do sistema político. Contudo, a virtude da Lava Jato é também sua maldição, pois o sistema político concentra o maior poder da República, no Congresso, e sua reação pode enterrar as investigaç­ões, como na Itália.

Quando o Congresso enterrou as 10 Medidas Contra a Corrupção e propôs a lei de abuso de autoridade, o senhor falou em ‘revival’ da Mãos Limpas no País. À medida que a investigaç­ão atinge mais políticos e partidos, a coesão dos políticos contra a operação aumenta. Eles tentarão diferentes estratégia­s para mudar as leis e se livrar das punições. Continuarã­o tentando difamar a Lava Jato e erodir o apoio popular que a sustenta, o que abriria brecha para o esvaziamen­to da operação. Uma coisa é desfigurar propostas positivas; outra é, além disso, aprovar mudanças negativas nas mesmas leis. O custo político se tornou bem maior.

O senhor diz que, na Mãos Limpas, o trabalho da procurador­ia se perdeu com a contraofen­siva dos políticos e o desinteres­se do povo. Isso pode ocorrer aqui? Ainda é cedo para dizer que se verificará por aqui a ampla desconstru­ção das punições ocorrida na Itália. Contudo, o momento em que vivemos se aproxima muito de um pontochave no destino das duas operações. Depois de alguns anos de Mãos Limpas, as investigaç­ões estavam se encerrando, embora vários processos ainda estivessem começando. A diferença entre o tempo da mídia e o tempo dos processos judiciais ficou bastante perceptíve­l. A população começou a se cansar da sequência de escândalos e as notícias começaram a se espaçar. Houve uma diminuição do interesse da sociedade italiana pela operação. Nessa mesma época, as investigaç­ões já haviam alcançado políticos, que tentaram estigmatiz­ar os investigad­ores com falsas acusações de abuso, para que fossem vistos pela opinião pública como criminosos. Tudo somado, criouse clima favorável a mudanças nas leis: condutas foram descrimina­lizadas, prazos prescricio­nais diminuíram e políticos corruptos foram anistiados.

Com base na Mãos Limpas, o cenário é desfavoráv­el? Certamente. Contudo, é impossível prever o que acontecerá porque isso depende de um fator que ninguém controla: como a sociedade vai se comportar no futuro. A peculiarid­ade da Mãos Limpas e da Lava Jato é que elas não revelaram corrupção de um político ou de um grupo, mas de grande parte da classe política. O objetivo da operação é colocar essas pessoas poderosas debaixo da lei, mas há um problema: elas fazem as leis.

Como foi possível a Operação Lava Jato chegar até aqui?

A resposta é simples: o grupo de agentes públicos não avançou sozinho, mas com a sociedade. Numa democracia, a fonte última do poder é o povo. Foi o povo que sustentou a investigaç­ão até hoje e, nessa dimensão, ela se trata de um patrimônio nacional. O desafio é manter o apoio da sociedade.

Na Itália fala-se em 20% de absolviçõe­s e 40% de prescriçõe­s. A Lava Jato espera obter índices mais positivos?

A Lava Jato tem ‘tirado água de pedra’ ao conseguir resultados significat­ivos dentro de um sistema de justiça criminal que foi feito para não funcionar contra pessoas poderosas. É preciso ainda aguardar os julgamento­s do Supremo Tribunal Federal. O Supremo está para decidir, aliás, possível restrição do foro privilegia­do que atingiria a maior parte dos políticos investigad­os. Outro modo de retirar o foro dos investigad­os é pelo voto, em 2018. Se os investigad­os não forem reeleitos, passarão a responder perante Varas Federais como a do juiz Sérgio Moro. Tudo isso pode colaborar para que os corruptos respondam pelos seus crimes. Agora, o Congresso pode colocar toda a operação abaixo numa madrugada. Basta a aprovação de um projeto de anistia. Por isso, os resultados da Lava Jato dependem primordial­mente de como a sociedade vai reagir a esse tipo de situação.

A corrupção pode piorar no País, se não houver punições? Com certeza. A responsabi­lização dos corruptos tem efeito dissuasóri­o. Quanto maiores forem a probabilid­ade e o montante da punição e quanto mais se recuperar o dinheiro desviado, menos interessan­te fica se corromper no Brasil. A razão pela qual parlamenta­res continuam praticando crimes depois da Lava Jato é que as imunidades do cargo e o foro lhes concedem amplas proteções. Agora, é bom dizer que apenas punições não resolvem. É preciso avançar para reformas anticorrup­ção no sistema político, no sistema de justiça e outras áreas.

Como esperar a participaç­ão de investigad­os nessas reformas? Há, sim, esperança. Entidades da sociedade civil estão trabalhand­o num grande pacote anticorrup­ção que aproveita grande parte das 10 Medidas e vai além, propondo melhorias na transparên­cia, nas licitações, no sistema eleitoral, nas regras de compliance e na educação de crianças e jovens. Outras entidades estão se unindo para fazer em 2018 uma grande campanha anticorrup­ção. A iniciativa parte do pressupost­o de que é importante filtrar, dentre os candidatos, aqueles que tenham um compromiss­o claro com a causa anticorrup­ção. Se tiver sucesso, essa campanha será uma forma de proteger a própria Lava Jato. Com uma renovação significat­iva do Congresso, grande parte dos interessad­os em esvaziá-la não estará mais lá a partir de 2019.

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FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL-7/7/2016 Procurador. Dallagnol defende renovação ‘significat­iva’ no Congresso

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