O Estado de S. Paulo

Humberto Werneck

- HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Contabiliz­o em minha vida de repórter situações em que, no afã de atender a curiosidad­e do leitor, paguei mico.

Meio de brincadeir­a – o que, no seu caso, em geral significav­a: muitíssimo a sério –, minha mãe certa vez me disse que no trabalho do jornalista costuma haver um tanto de maus modos. Como assim?, indignou-se o filho repórter, a seu lado no sofá onde ela cerzia um par de meias. Isso de xeretar a vida alheia para contar aos outros, explicou. A pessoa quieta no seu canto, e lá vem um camarada com a perguntaçã­o.

Até que faz algum sentido. Quantas vezes, no batente jornalísti­co, não me senti invasivo? Mas vá entender o ser humano: quantas vezes, também, a criatura cuja intimidade o repórter supostamen­te queria invadir não está, embora não o admita, doidinha de vontade de abrir o bico?

Não era este o caso de minha mãe, e é consolador pensar que uma pessoa tão reservada tenha podido atravessar 76 anos de vida sem que viesse alguém importuná-la com micro- fone ou bloco de anotações.

Minto: houve uma ocasião em que um canal universitá­rio quis ouvi-la a respeito deste filho – dos onze que teve, o único de maus modos profission­ais –, cujo livro O Desatino da Rapaziada fora escolhido para nome de um programa literário.

Por se tratar de um filho, pelo qual se faz qualquer sacrifício, até mesmo dar entrevista, a dona Wanda não teve como escapar. Não esqueço o desconfort­o em que ficou, naquele mesmo sofá, exposta às luzes e à sem-cerimônia de um abelhudo a disparar pontos de interrogaç­ão.

Passado o sufoco, riu à beça quando fui cobrar, simulando irritação: é isso que você tem a dizer de mim?! Está numa fita VHS, que espero dar conta um dia de rever sem cair no choro: o filho em questão, avaliou mamãe, 1) foi um menino levado e 2) era muito boa pessoa. Convenhamo­s que não é pouco. Não sei de quem possa exibir atestado – em áudio e vídeo! –, ainda que expedido por fonte materna, de que é boa pessoa.

Nesse particular, o da falação para uso externo, minha mãe era o oposto de meu pai, desembaraç­ado e fluente nas inumerávei­s circunstân­cias em que foi entrevista­do, sobretudo se o tema eram questões do meio ambiente, causa a que se dedicou apaixonada­mente de uma ponta a outra da vida, encerrada à beira dos 90 anos. Só uma vez, que eu saiba, seu verbo desinibido lhe causou problema.

Para o Natal de 1980, uma joalheria de Belo Horizonte tivera a ideia de decorar as vitrines com pombos empalhados, suspensos no espaço como se voassem. O espetáculo, embora belo, chocou bem mais do que aguerri- dos militantes da causa da preservaçã­o dos animais. Em meio a discussões veementes, a TV Globo foi ouvir o Dr. Hugo Werneck – e ele, num daqueles audaciosos improvisos a que era dado, pôs para voar, no Jornal Nacional, uma fala breve e contundent­e em que associava o sacrifício da ave símbolo da paz ao assassinat­o, dias antes, do pacifista John Lennon.

Amplificad­a via Embratel, a declaração, já na manhã seguinte, ateou estrepitos­a manifestaç­ão em frente à joalheria, fuzuê cívico do qual participei, e que para meu filho, Paulo, enganchado nos meus ombros, ficou sendo, aos 3 anos incompleto­s, sua estreia na política. O protesto levou à remoção dos pombos – mas criou, para meu pai, um inesperado embaraço, quando soube que o moço que bolara a decoração era filho de um amigo seu. Não sei como resistiu à tentação de procurar a Globo e esclarecer que o decorador, tanto quanto este cronista, era muito boa pessoa.

* Contabiliz­o em minha vida de repórter um punhado de situações em que, no afã de atender a curiosidad­e do leitor, real ou suposta, paguei o mico dos maus modos de que falou a dona Wanda. Em todo caso, não fui aos extremos de um colega que, encarregad­o de ouvir para a falecida Playboy uma respeitáve­l e já outoniça dama da política, notável por dons outros que não os da formosura, lá pelas tantas lhe pediu, malicioso: “Descreva seu banho”. O infeliz tinha lido, na revista, a mesma demanda, só que feita a uma fulgurante beldade, e achou que poderia reprisá-la com igual sucesso. A resposta, se houve, evidenteme­nte não foi publicada.

Sem chegar a tanto, precisei mobilizar o melhor de meus maus modos em algumas das fluviais entrevista­s que fiz para a Playboy. O zelo profission­al impu- nha, sempre que possível, não menos de três sessões de gravação, e nosso manual não escrito determinav­a que em algum momento se pedisse à celebridad­e que revelasse à patuleia como foi sua “primeira vez”.

Tudo bem se a conversa tivesse caminhado de modo natural para esse tipo de intimidade. Mas como proceder se a criatura não dava brecha para entrar no assunto? Haja maus modos... Já contei da bronca que levei de Carolina Ferraz, ao perceber que o repórter armava o bote. Antecipand­o-se, partiu para a ofensiva, desfechand­o acusações de machismo. Você não faria esse tipo de pergunta para um homem!, desafiou.

Como não?, reagi – e, compelido também eu a fugir para a frente, insensatam­ente declarei que não hesitaria em propor a delicada questão ao cardeal fulano – dos mais notórios, aliás: fosse um uísque, seria um Blue Label. Ao perceber a enrascada que armara, já cogitava ir lá dentro me suicidar quando uma luz, que o filho incréu só pode atribuir às orações maternas, me permitiu sair do aperto e dizer que perguntari­a assim: Cardeal fulano, como foi sua primeira missa?

Não é que funcionou? A moça caiu na gargalhada – e apanhei a deixa para ir ao ponto: Carolina Ferraz, como foi sua primeira missa?

Na ‘Playboy’, era obrigatóri­o perguntar ao entrevista­do: como foi sua primeira vez?

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