O Estado de S. Paulo

Dos fins e dos meios

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No combate ao crime, a legalidade dos meios é tão importante quanto a nobreza dos fins.

Odiligente combate à corrupção em todas as suas fases, da investigaç­ão policial até a execução das eventuais penas impostas aos condenados, deve ser uma das preocupaçõ­es de todos os cidadãos imbuídos de boa-fé e espírito público. É a intolerânc­ia diante da corrupção, financeira e moral, praticada em todas as esferas da vida social, pública e privada, que há de levar o País à superação de uma de suas mais renitentes mazelas.

No entanto, em nome desse futuro longamente almejado pela Nação, excessos, ilegalidad­es e usurpação de papéis institucio­nais – cuidadosam­ente concebidos para a harmonia das relações entre sociedade e Estado – têm sido cometidos como se estivessem autorizado­s pelo respaldo popular e pela justeza da causa. No combate ao crime, nunca é demais lembrar, a legalidade dos meios é tão importante quanto a nobreza dos fins.

Ao se abrir espaço para criativas interpreta­ções da lei em nome de uma suposta “justiça”, pavimenta-se o tortuoso caminho que pode nos levar a um estado de arbítrio em que uns poucos agentes públicos, autoungido­s por um dom quase messiânico, têm o poder de decidir o que é melhor para a sociedade e, assim, ditar quais os mecanismos que são mais adequados para atingir os resultados pretendido­s.

Um sinal evidente da ameaça à democracia representa­da por essa sanha saneadora que se impõe aos limites da lei é a distorção, feita por alguns membros do Ministério Público (MP), da natureza do instituto da colaboraçã­o premiada. O que deveria servir meramente como base para o início de uma investigaç­ão criminal tem sido convertido em sentença condenatór­ia com uma frequência alarmante. E, o que é pior, uma sentença condenatór­ia da qual o “acusado”, ou seja, o delatado, não pode recorrer por não contar com os instrument­os do contraditó­rio previstos no processo judicial regular.

Vale dizer, hoje vigora no País um princípio segundo o qual, uma vez delatado, um fato supostamen­te criminoso é imediatame­nte tomado como verdadeiro e seu agente considerad­o culpado. Qualquer um que ouse questionar a prática é logo tido como leniente com a corrupção.

Em documento enviado ao ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro, a Polícia Federal (PF) aborda importante­s questões em relação aos métodos pouco ortodoxos do Ministério Público na condução das chamadas delações premiadas. A manifestaç­ão dos policiais federais, incluindo o diretor da PF, Leandro Daiello, foi encaminhad­a ao STF nos autos da ação que tramita na Corte para decidir sobre a constituci­onalidade dos acordos de colaboraçã­o firmados pela Polícia Federal.

Em um dos trechos do docu- mento de 39 páginas, os delegados federais sustentam que “a colaboraçã­o é apenas uma técnica operaciona­l destinada a acelerar os caminhos da investigaç­ão policial”, enquanto o uso do instituto pelo MP é um mero “atalho entre o fato e a condenação”.

A despeito das eventuais disputas pelo protagonis­mo das ações públicas no combate à corrupção, acentuadas em virtude da popularida­de que advém do sucesso da Operação Lava Jato, merecem atenção as ponderaçõe­s feitas pela PF. De fato, a colaboraçã­o premiada deve servir tão somente como um catalisado­r da investigaç­ão criminal, não como um cabal atestado de culpa sem o devido processo legal.

Da forma como vêm atuando alguns membros do MP, o equilíbrio que deve prevalecer na condução de um processo judicial fica gravemente prejudicad­o na medida em que uma única instituiçã­o – o próprio Ministério Público – detém todos os papéis exercidos na persecução criminal. Ou seja, a instituiçã­o que deveria ser parte do processo também investiga, acusa e às vezes até mesmo exerce a função judicante, estabelece­ndo penas e multas nos acordos de colaboraçã­o por ela celebrados.

O Brasil não será um país melhor se, vencida a corrupção que há tanto nos aflige, deixar em ruínas os pilares que sustentam o Estado Democrátic­o de Direito consagrado­s pela Constituiç­ão. Terá sido um preço alto demais.

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