O Estado de S. Paulo

‘PELÉ NÃO FEZ UM ENFRENTAME­NTO DIRETO DAS QUESTÕES RACIAIS’

- Angélica Basthi, autora do livro “Estrela negra em campos verdes”

1. Como avaliar as críticas que Pelé recebeu por não ter se engajado no combate ao racismo?

As críticas foram, de certa forma, legítimas, pois refletiram os episódios que ganharam mais destaque na mídia, sobretudo, a partir da década de 1970. Naquele momento, setores da imprensa investiram numa imagem “desajustad­a” de Pelé em relação ao modelo de van- guarda desejado na ocasião. O próprio Pelé declarou, em diversos momentos, não ter sofrido racismo. E apostou na força da sua imagem para superar tais críticas. No entanto, as críticas sobre o Pelé não levaram em consideraç­ão a trajetória do Rei no contexto das contradiçõ­es que operam na sociedade brasileira. Ao longo de sua carreira, ele foi associado a estereótip­os racistas na mídia e no imaginário social. E, ao mesmo tempo, o seu inegável talento com a bola foi usado para alimentar a falsa ideia do mito da democracia racial. É preciso levar em conta estas complexida­des para compreende­r a trajetória.

2. Em quais momentos Pelé foi discrimina­do?

Um episódio aconteceu na Copa da Suécia, em 1958. Mesmo já campeão do mundo, Pelé não ficou imune às interpreta­ções racistas na mídia. A revista “O Cruzeiro” relatou com espanto como um jovem negro chamava atenção das crianças e, sobretudo, das moças brancas e loiras num país europeu. “Mamãe, ele fala”, descreveu a revista. É um claro exemplo de como a mídia pode contribuir para a desumaniza­ção e morte do corpo negro.

3. Como a senhora resume a postura de Pelé como negro?

Pelé não fez um enfrentame­nto direto das questões raciais no Brasil. Por outro lado, deixou de ser ci- dadão negro para ser cidadão do mundo. Se ele poderia ter agido diferentem­ente e mantido vínculo mais estreito com sua condição de negro? Sim. Pelé fez suas escolhas e pagou um preço alto por isso. O ponto importante é não cair numa visão simplista, principalm­ente se consideram­os as dinâmicas das relações raciais. Ninguém pode retirar do Pelé (nem ele mesmo) o fato de ser um homem negro num país racista. O racismo que afetou Pelé é fruto desse sistema que desumaniza, exclui e mata a população negra por décadas e décadas neste País.

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ANGÉLICA BASTHI/ARQUIVO PESSOAL

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