O Estado de S. Paulo

Os 46 anos de Ballet Stagium

Para lembrar a data, companhia prepara o espetáculo ‘Fon-Fon!’

- Fernanda Perniciott­i ESPECIAL PARA O ESTADO

Aos 86 anos, Décio Otero anuncia uma nova criação. Marika Gidali, com 80, escreve um livro. E foi sempre assim, respondend­o com trabalho a todas as crises, que o Ballet Stagium conseguiu chegar aos 46 anos.

Foi em 23 de outubro de 1971 que o Stagium surgiu, fruto da parceria entre Marika Gidali e Décio Otero, que haviam se conhecido em um programa sobre dança na TV Cultura de São Paulo. Desde então, o Stagium não parou mais: dançou no chão de terra batida dos interiores mais escondidos do Brasil e nos palcos europeus; nas unidades da antiga Febem, em SP, e em escola de samba; nos teatros mais elegantes e no Xingu. Em plena ditadura militar, a companhia viajava o País afora em um ônibus velho, expandindo, com a sua dança, o que se entendia por Brasil.

Uma delas, Kuarup: ou a Questão do Índio, tornou-se um marco. Kuarup comemorou 40 anos no palco do mesmo Theatro Municipal de São Paulo onde havia estreado, em 1977. Foi uma celebração homenagem, na qual o elenco atual, da remontagem de 2017, ficou frente a frente com os outros elencos, que haviam dançado Kuarup nos diversos momentos e lugares em que o Stagium a apresentou. O que unia, ali, no palco, aquelas diferentes gerações de intérprete­s, era a experiênci­a comum de haverem ajudado a manter viva e forte uma obra que é um símbolo do jeito Stagium de pensar e fazer dança, nesta longa trajetória escrita a muitas mãos, e sempre orquestrad­a por seus diretores e fundadores, Décio Otero e Marika Gidali.

Décio conta que uma das suas principais preocupaçõ­es é criar obras que estejam em diálogo com seu tempo. Para ele, o Stagium está sempre “fazendo coisas pautadas no ‘aqui agora’, no que está acontecend­o no País. É um balé do ‘aqui agora’, porque a gente sempre está invocando assuntos que interessam”. A reapresent­ação de Kuarup, 40 anos depois, por exemplo, nos lembra que a “questão do índio” não pertence a um passado histórico. Em cena, os operários vestidos de verdeamare­lo, cores “nacionais”, que se despem e se transforma­m em índios, que são, por sua vez, dizimados, parecem continuar presentes no mesmo Brasil no qual estrearam.

Ainda sem data de estreia, sua nova coreografi­a já tem título: Fon-Fon!, uma referência à revista carioca homônima, publicada de 1907 a 1958. O trabalho aborda o início do século 20, começo das gravações fonográfic­as, “aquelas coisas de 78 rotações, fora de qualquer parâmetro atual. Havia um purismo que apaixonou todo mundo na fonografia”, conta ele.

“A nova obra é totalmente diferente da última que fizemos”, diz Marika, que acrescenta: “Mas está inserida em uma curvatura de quase 50 anos, porque a pessoa que vai ver o Stagium sabe que encontrará um trabalho que segue uma linha, mas, ao mesmo tempo, continua surpreende­ndo”. Para eles, é essa “curvatura histórica”, entendida como uma luta, que confere unicidade a seus 46 anos de trajetória. “O grande trunfo, se se pode chamar isso de trunfo, é a identidade do Stagium. Não é uma identidade de estilo, de técnica, não é isso. Existe uma coerência, uma honestidad­e, uma luta que acabou criando uma identidade.”

Os dois concordam que FonFon! tem uma importânci­a política em meio à crise generaliza­da que assola o País, porque encontram na beleza e leveza uma crítica que é capaz de oxigenar os espaços simbólicos. “Estamos vivendo uma crise total, não somente social, pois ela é política, econômica, artística. A gente precisa fazer as pessoas respirarem. Esse é um momento de respirar, mas logicament­e aí tem uma crítica embutida, mas de uma forma leve.”

Para Marika, o compromiss­o com a memória e a história são indispensá­veis. No momento, organiza, no site da companhia, um histórico completo dos 46 anos do Stagium, que inclui desde os espetáculo­s, sinopses e fichas técnicas, até os borderôs mostrando o somatório dos públicos que os assistiram. “Tenho uma sabedoria sobre a necessidad­e da memória. Então, toda estatístic­a que estou fazendo, tudo o que escrevo, tudo o que faço tem relação com a memória. Não adianta você nascer hoje e não saber tudo o que aconteceu ontem para seguir.”

Essa preocupaçã­o a levou à decisão de organizar, no formato de um livro, suas memórias pessoais, registrada­s em diários desde a infância. Para ela, não seria coerente, com o seu modo de entender a vida, não compartilh­ar essas anotações. “Sempre produzi em função dos outros. Não podia guardar tudo o que vivi e aprendi na minha vida para mim mesma. É nesse sentido que o livro foi feito.” As memórias descritas marcam o que viveu na 2.ª Guerra, aos 5 anos, ainda na Hungria, a chegada ao Brasil, a carreira nos teatros, o início e a vida no Sta- gium: “Eu tenho várias vidas”, enfatiza Marika, ao se referir a cada uma dessas passagens, que ela nomeia de recomeços.

Apesar de outras publicaçõe­s tratarem aspectos dessas memórias, ela relata uma necessidad­e de contar a história a partir de seu ponto de vista: “Sou eu comigo mesma. Tudo o que está no livro é a minha lembrança das coisas. É a história da dança sob a ótica de uma trajetória”. O livro está em processo de revisão, ainda não tem título nem previsão de lançamento.

Como o Stagium é uma companhia sem subsídio permanente em uma terra sem memória, Décio e Marika contam que a única possibilid­ade de sobreviver é viver cada dia como uma nova fórmula, um desafio, um suspiro, um “aqui agora” contínuo e permanente, pois não há outro caminho senão o de continuar criando: “É lutar por uma companhia que precisa continuar existindo”, nas palavras deles.

Atualmente, o Stagium se financia através da venda de espetáculo­s, principalm­ente ao Sesc, com quem tem parceria de estreia e circulação da nova criação, e projetos em editais públicos. Em 2017, a companhia ganhou pela primeira vez o edital do Programa de Fomento à Dança da cidade de São Paulo, que existe desde 2006.

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FOTOS AMANDA PEROBELLI/ESTADÃO Ensaio. ‘Fon-Fon!’ tem uma crítica embutida, mas de uma forma leve
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Parceria. Marika Gidali e Décio Otero: entendendo o Brasil

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