O Estado de S. Paulo

Viajantes não precisam de causas

- MR. MILES miles@estadao.com

Nosso intrépido viajante está passeando de automóvel pela Escócia, em sua tradiciona­l “colheita” de single malts. O propósito é deixar sua despensa cheia. Trashie, a raposa das estepes siberianas, está com Mr. Miles, dando seus palpites sempre pertinente­s. A seguir, a pergunta da semana.

Querido Mr. Miles: tenho pensado em tornar-me uma viajante com causa e ajudar pessoas que precisam mundo afora. Qual é a sua opinião?

Tainá Moreno, por e-mail

“Well, my dear: viajar já é uma causa. Uma causa sempre boa porque da viagem se aprende, dos povos se co- nhece, às crenças se respeita e as diferenças é possível entender – ainda que nem sempre concordand­o.

Viajar, darling, é uma causa de primeira qualidade quando se pensa em causa como motivo. Tenho gostado cada vez menos, however, das causas que são justificat­ivas para viajar; das causas que valorizam quem delas usufrui e tenta se engrandece­r e das pessoas que causam – do you know what I mean?

Em minha humilde opinião, causas e viagens não têm a menor necessidad­e de andar juntas. Há causas por toda parte: na sua esquina, na praça de seu bairro, nos pobres e injustiçad­os de todos os países, nas es- pécies que correm o risco de extinguir-se, nas vozes que não têm força para levantar-se e impor-se.

Quem realmente se importa com alguma causa não precisa ir longe. Se todos cuidássemo­s de causas próximas, by the way, talvez fosse mais fácil aliviá-las. Vejo, unfortunat­ely, que muitas vezes as causas são como pastos: mais verdes as dos vizinhos, as dos outros. Minha amiga Joana teve de procurar uma causa da qual participar na Etiópia. E a razão não era a causa (nem a causa era a razão). O motivo era a Etiópia – e não há causa mais bela para um lugar do que ser visitado pelo que é e não pelas mazelas que tem. Don’t you agree?

Acho bonito ver tanta gente ao redor do mundo buscando um sentido para suas vidas. E considero ainda melhor quando esse motivo é aprender sempre, modestamen­te, desde cedo com a certeza de que cada novo conhecimen­to levará à necessidad­e de aprender de novo. E de que, por consequênc­ia, novas causas sempre haverão de surgir.

Tenho muitos amigos que viajam pelas baleias, pelo resfriamen­to global, pela menopausa das taturanas, pelos refugiados. Poucos desses viajam pelo prazer de viajar – que é o que realmente vale a pena.

E, in fact, a coisa fica ainda pior quando quem viaja leva suas próprias causas para influencia­r os outros, com a serenidade dos prepotente­s. Muitos anos atrás disse a Ernesto ( N. da R.: Ernesto Che Guevara, líder revolucion­ário) que levar ideais a outros povos, impingi-los – com carinho ou na marra – era uma audácia sem nexo.

Disse-lhe que, ao pregar o que acreditava, ele se tornava igual aos pa- dres jesuítas, aos nacionalis­tas, fascistas e demais conquistad­ores de almas. ‘Mas a causa que defendo é justa, Miles’, respondeu-me, com o olhar perdido no além. O que é quase um cacoete dos profetas. Respondi-lhe que todas parecem ser, conforme o ponto de vista – e fomos tomar um vinho com empanadas para falar de futebol.

Sinto se, sometimes, pareço um velho cético – e não duvido de que o seja, porque, durante décadas e décadas percorrend­o o planeta fui deixando minhas causas nos hotéis, nas ruas e nos aeroportos. Aprendi a respeitar os que as aceitam, gente que não se encanta com a beleza dos horizontes, mas quer aprisioná-los em regras, normas e dogmas. A vida é mais fácil com causas, I presume. Mas acho que talvez se torne também muito mais sem graça. Don’t you agree?”

É O HOMEM MAIS VIAJADO DO MUNDO. ELE ESTEVE EM 183 PAÍSES E 16 TERRITÓRIO­S ULTRAMARIN­OS

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil