O Estado de S. Paulo

Aprendizad­o para a Lava Jato

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Juiz e promotor à época da Operação Mãos Limpas, na Itália, lembraram que o combate à corrupção vai muito além da questão jurídica, envolvendo a cultura e a educação de um país.

Ainda que haja muitas diferenças, tanto na legislação como na cultura de cada país, a trajetória da Mani Pulite (Mãos Limpas) – a famosa operação italiana anticorrup­ção que, de 1992 a 2005, investigou cerca de 4 mil pessoas, com mais de uma centena de parlamenta­res, ministros, juízes e altos executivos de empresas – tem muito a ensinar para o bom encaminham­ento da Lava Jato no Brasil, reconhecer­am unanimemen­te os quatro palestrant­es do Fórum Mãos Limpas & Lava Jato, promovido ontem pelo Estado em parceria com o Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP).

Gherardo Colombo e Piercamill­o Davigo, juiz e promotor à época da Operação Mãos Limpas, lembraram que o combate à corrupção vai muito além da questão jurídica, envolvendo a cultura e a educação de um país. Nesse sentido, os dois disseram que é preciso ter cuidado ao avaliar os resultados de uma operação que investiga casos de corrupção. Além de ser irreal a ideia de que a operação acabará com a corrupção, essa expectativ­a é contraprod­ucente, pois pode levar à postergaçã­o de seu término, motivando exageros e causando um perigoso desgaste perante a opinião pública.

Piercamill­o Davigo, que atualmente é juiz da Corte Suprema de Cassação, comentou a importânci­a, no caso da Mãos Limpas, da colaboraçã­o de muitos investigad­os, o que proporcion­ou à Justiça informaçõe­s muito úteis para a investigaç­ão de vários crimes. Ressaltou, no entanto, que algumas pessoas falaram apenas parte do que sabiam, como simples forma de se safarem, e depois tiveram “carreiras políticas espetacula­res. Esse é um aviso que faço porque pode ocorrer aqui o mesmo fenômeno”, disse Davigo. Ou seja, não cabem ingenuidad­es a respeito das delações premiadas.

Também participar­am do Fórum Mãos Limpas & Lava Jato o procurador Deltan Dallagnol, da força-tarefa da Lava Jato, e o juiz Sérgio Moro, da 13.ª Vara Federal de Curitiba. Suas intervençõ­es explicitar­am duas maneiras bem diferentes de enxergar a Lava Jato.

Deltan Dallagnol vê na Lava Jato muito mais do que uma simples operação investigat­iva e judicial. Para ele, a Lava Jato deve ser instrument­o de transforma­ção do sistema político. Considera, por exemplo, que diante de corrupção tão generaliza­da, o Ministério Público estaria autorizado a atuar no debate político. Ao comentar a experiênci­a com o projeto das Dez Medidas Anticorrup­ção, Dallagnol disse que “a estratégia agora não é mais coletar assinatura­s, mas escolher senadores e deputados que tenham passado limpo, espírito democrátic­o, e apoiem o combate à corrupção”. Insatisfei­to com as limitações institucio­nais do cargo que ocupa, o procurador almeja a eficácia política. Parece não se dar conta de que, atuando assim, reproduz os erros, e não os acertos da Mãos Limpas, com sua pretensão messiânica de redimir a política.

Já a fala do juiz Sérgio Moro teve um tom completame­nte diferente. Sem se negar a ver as limitações do trabalho da Justiça – “toda justiça humana é imperfeita”, reconheceu –, Moro reafirmou que a eficácia da função judicial está justamente em respeitar os limites da lei. Defendeu, por exemplo, o uso em alguns casos da prisão preventiva, mas admitiu que se trata de um tema polêmico. “Sei que existem críticas, e nós temos que ouvir essas críticas”, disse Moro. Ao lembrar que não é o dono da verdade, falou da necessidad­e de o juiz proferir decisões fundamenta­das. Muitas vezes, são possíveis várias interpreta- ções da mesma lei, mas nem por isso a lei deve deixar de ser o critério. O respeito à lei é a garantia de que o combate à corrupção não é arbítrio, mas manifestaç­ão do Estado Democrátic­o de Direito.

Sobre a Mãos Limpas, “acho que é uma história de sucesso”, disse Moro. “Mas talvez se tenha esperado mais de uma operação judicial do que ela pode fazer.” Com esse reconhecim­ento da natureza e dos limites da esfera judicial, Sérgio Moro reiterou, uma vez mais, não ter vocação messiânica. É um juiz, e a redenção da política está fora da sua competênci­a. “O que me cabe”, disse, “é julgar os casos concretos, a partir das provas produzidas nos autos.” Essa profunda consciênci­a de sua tarefa, respeitand­o os limites do cargo, foi o que permitiu à Lava Jato produzir bons frutos. Afinal, à Justiça não cabe guiar, e menos ainda substituir, a população na esfera política.

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