O Estado de S. Paulo

Cida Damasco

- E-MAIL: CIDA.DAMASCO@GMAIL.COM CIDA DAMASCO ESCREVE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

A conversa que circula no Planalto é virar a página e aproveitar ao máximo a travessia até 2018.

Quando alguém sai de um relacionam­ento traumático, costuma procurar algo visível para marcar o recomeço. Roupas e cabelos de estilo oposto ao de sempre, corpo moldado por dieta e exercícios radicais e até mesmo uma cirurgia plástica dão a ilusão de que uma nova vida está começando. Depois de algum tempo, porém, vem o reconhecim­ento de que é preciso simplesmen­te ir adiante e fazer o que é possível.

Com o recomeço do governo Temer, as coisas parecem estar nessa primeira etapa. Encerrada a maratona de “negociaçõe­s” para conseguir enterrar a segunda denúncia contra o presidente, a conversa que circula no Planalto, pelo me- nos na ala econômica, é virar a página, e aproveitar ao máximo a travessia até 2018. O discurso é ocupar o tempo que resta até as eleições para fazer o que não deu para ser feito até agora. Retomar as reformas, o ajuste fiscal, as privatizaç­ões, enfim, tudo aquilo para o qual Temer foi “eleito” pelos mercados e pelos setores empresaria­is. É como se, de um momento para outro, os obstáculos tivessem sido eliminados.

A grande interrogaç­ão, porém, é se haverá condições para esse “proativism­o” que dá o tom das declaraçõe­s oficiais. No dia seguinte da votação na Câmara, a realidade já começou a se impor. Enquanto o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, insiste que a reforma da Previdênci­a é a prio- ridade das prioridade­s – ou isso ou o colapso das contas públicas – repetem-se advertênci­as de que será preciso primeiro reorganiza­r a base e não será fácil aprovar nem mesmo um texto desidratad­o, concentrad­o na fixação da idade mínima. E da boca de quem? Da boca do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, detentor do poder de ditar a agenda do Congresso e cada vez mais empenhado em se descolar dos interesses do Planalto e cuidar dos próprios interesses.

O placar da vitória de Temer ampli- fica essas dúvidas. Claro que o número de votos a favor ficou bem acima das previsões dos piores momentos – 251 contra 240. Mas houve perda de 12 valiosos votos na comparação com os obtidos na primeira denúncia. E se os 263 votos daquela vez já indicavam dificuldad­es para aprovar a nova Previdênci­a, imagine o placar mais encolhido de agora – mesmo consideran- do o alto teor de “volatilida­de” que caracteriz­a o Congresso. Falando claro, a aprovação dessa reforma, que exige 342 votos, ficou bem mais incerta e mais “cara”. E quanto mais ela demorar, maior o risco de rejeição. A campanha eleitoral é naturalmen­te inimiga de mudanças que estejam ligadas a perda de direitos.

Pressa, de fato, deveria ser a palavra de ordem para o governo. A equipe econômica continua falando em mudanças “para já”. De fato, há pela frente pouco mais de um mês de vida útil do Congresso em 2017. E o que o governo precisa fazer depende do Congresso. Além da reforma da Previdênci­a, estão as medidas que ajustam o Orçamento de 2018 às metas fiscais para o ano – não só ao déficit primário de R$ 159 bilhões como ao teto de gastos – e para vigorar no ano que vem têm de passar ainda neste exercício. Entre elas, o aumento da alíquota da contribuiç­ão previdenci­ária e o adiamento dos reajustes salariais para os servidores públicos, obviamente vistos com maus olhos pelos setores atingidos.

Mas esse senso de urgência não parece generaliza­do. Reafirmand­o seu protagonis­mo nesse novo turno do governo Temer, o presidente da Câmara fala em prioridade absoluta para a agenda econômica, mas põe para votar a lei de abuso da autoridade. Além disso, começam a sair das sombras defensores da tese de que talvez não seja necessário adotar logo as tais medidas impopulare­s. Eles se baseiam nos números mais favoráveis exibidos pela arrecadaçã­o nos últimos meses – seja em razão do aumento das receitas de impostos ligados à melhora da atividade econômica seja pela expectativ­a de receitas de privatizaç­ões e concessões, sinalizada­s pelo resultado do leilão de sexta-feira das áreas de pré-sal.

Entrou na conta aquele dinheiro inesperado, o cheque especial foi reduzido? Quem sabe não dá para deixar para depois aquele plano de enxugar o orçamento doméstico, que parecia inadiável? Como se pode ver, difícil é se livrar da ilusão do recomeço.

Governo fala em urgência nas reformas. Mas jogo político continua empacado

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