O Estado de S. Paulo

Lúcia Guimarães

- E-MAIL: LUCIA.GUIMARAES@ESTADAO.COM LÚCIA GUIMARÃES ESCREVE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

Como sabemos, a intimidaçã­o sexual de jovens tem mais a ver com poder do que com desejo.

Otsunami das revelações sobre o alegado estuprador serial e produtor de cinema Harvey Weinstein transbordo­u para outras indústrias. Na semana passada, o jornalismo ocupou a berlinda e dois importante­s formadores de opinião no eixo Washington-Nova York tomaram o elevador expresso para o porão da desonra.

Mark Halperin, autor de best-sellers políticos, foi um dos mais influentes editores na cobertura nas últimas quatro eleições presidenci­ais, com passagens pela ABC, Time, Bloomberg e NBC. Leon Wieseltier foi o editor literário da revista The New Republic por mais de três décadas e, até a semana passada, era editor contribuin­te da revista Atlantic Monthly, além de ocupar uma fellowship na Brookings Institutio­n nomeada em homenagem a ninguém menos do que o filósofo Isaiah Berlin.

Não vou entrar em detalhes sobre o que ambos são acusados de fazer com jornalista­s e produtoras, mas, apesar de os incidentes variarem em grau de lascívia, o modus operandi de ambos era similar ao do mais violento e sociopata Weinstein: explorar a juventude, inseguranç­a e aspirações de mulheres jovens e contar com o silêncio cúmplice de colegas.

Ao ler a enxurrada de relatos sobre assédio sexual inspirados pelo hashtag #metoo (eu também), lembrei de uma tarde distante na era Cenozoica quando um homem famoso de meia-idade me perguntou, à queima-roupa: “Não há a menor chance de você transar comigo, certo?” “Certo!”, respondi, mais divertida do que oprimida, um pouco envergonha­da por ele. O homem cosmopolit­a se aproveitar­a da minha estupidez épica e me convencera a subir ao seu quarto de hotel em Manhattan com alguma desculpa de trabalho que hoje me escapa, algo a ver com um arquivo para uma reportagem. Mas ele era inteligent­e – ou impaciente- o bastante para abreviar educadamen­te a situação. É importante notar, a figura não tinha papel na minha trajetória profission­al. Mas tinha poder para me prejudicar com quem tomava tais decisões.

A turma da indignação recreativa ten- ta sapecar no escândalo Weinstein o rótulo de patologia progressis­ta, na aflição de justificar o apoio ao homem que se elegeu depois de ser ouvido numa gravação se gabando de assédio sexual, apoiado com zelo stalinista por uma rede de TV, a Fox News, que perdeu o fundador e dois âncoras acusados de assédio serial. Como sabemos, a intimidaçã­o sexual de mulheres ou homens jovens por homens ou mulheres tem muito mais a ver com poder do que com desejo. É importante aproveitar o momento para outras consideraç­ões. É bem possível que o resultado da eleição presidenci­al e seu efeito sobre a psique americana tenham produzido um ambiente favorável ao rompimento do silêncio de décadas em torno de Harvey Weinstein, numa explosão de raiva com a impunidade masculina.

Em profissões mais criativas, como cinema ou jornalismo, o poder de gente como Halperin e Wieseltier é especialme­nte pérfido. Eles podem traficar subjetivam­ente sua influência com mais sucesso, promovendo quem diz sim e usando alguma desculpa intelectua­l para quem diz não.

Além do estrago pessoal de longo prazo que interações com estes homens podem causar, há uma consequênc­ia histórica que não será corrigida apenas com manifestaç­ões de raiva na rede social. Leon Wieseltier disse ao New York Times, em 2007, que Hillary Clinton era “como alguma dona de casa infernal, que viu algo que quer e não para de lhe azucrinar, até que você diz, OK, pode levar, se torne presidente e me deixe em paz.” Já Mark Halperin disse no ar que as acusações de várias mulheres contra o atual presidente não eram nada demais. Se o jornalismo é o primeiro rascunho da história, a escassez de mulheres com poder na profissão produz uma história com sexo.

Promovendo quem diz sim e usando alguma desculpa intelectua­l para quem diz não

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