O Estado de S. Paulo

Ameaças à democracia

- ELIÉZER RIZZO DE OLIVEIRA CIENTISTA POLÍTICO, PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA UNIVERSIDA­DE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP)

Ao longo do processo de impediment­o da presidente Dilma Rousseff, com as ruas tomadas por manifestaç­ões antagônica­s, avolumou-se a demanda de intervençã­o militar constituci­onal para pôr o País em ordem. Ordem contra os conselhos bolivarian­os que os governos do PT estariam impondo ao setor público, até mesmo às Forças Armadas. Ordem contra a Comissão Nacional da Verdade em seu empenho equivocado e ilegal contra a anistia de 1979 e a favor da punição de militares, policiais e civis suspeitos de responsabi­lidade por crimes conexos no processo de repressão da ditadura militar. Enfim, intervençã­o militar para dar fim à era petista na direção do Brasil.

Na crise múltipla em que o Brasil está mergulhado, ressoa a mesma tese da intervençã­o militar como se fossem impossívei­s soluções do próprio sistema democrátic­o. Em meados de setembro, um general de Exército da ativa postulou-a em Brasília, gerando descrédito político do seu comandante, que em diversas ocasiões se compromete­ra com a democracia. Dado que nada aconteceu ao indiscipli­nado general, cabe a questão: quando aquele que deve reagir à quebra da disciplina não o faz, torna-se conivente, em prejuízo da linha de autoridade, a saber, o comandante do Exército, o ministro da Defesa e o presidente da República.

Defendo neste artigo dois pontos de vista. Em primeiro lugar, as saídas para a crise devem ser buscadas, agora e sempre, nos recursos que a estrutura democrátic­a contém. Em segundo, a tese da intervençã­o militar é inconstitu­cional e politicame­nte desastrada, a História está a nos alertar; sua pregação deve ser encarada como incitação ao crime de ação violenta contra o Estado Democrátic­o de Direito.

A intervençã­o militar é ação das Forças Armadas sem o respaldo da Constituiç­ão, golpe com menores ou maiores profundida­de, consequênc­ias e duração. Em março de 1964, em nome do combate à corrupção e ao comunismo, o golpe militar (grave erro histórico!) conduziu ao regime autoritári­o que concentrou os poderes de governar, de legislar e de julgar, restringiu as liberdades de todo tipo, reprimiu com violência e ilegalidad­e, maculou as fardas, submeteu a Constituiç­ão ao poder militar (atos institucio­nais, atos complement­ares e outros). “A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituin­te. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituin­te”, encontramo­s na justificat­iva do Ato Institucio­nal n.º 1 (9/4/1964).

Um quarto de século depois do golpe de 1964, ao final do processo de redemocrat­ização, a Constituiç­ão de 1988 atribuiu responsabi­lidades (missões) às Forças Armadas, mas não lhes concedeu o poder de derrubar governos, dirigir o Executivo e o Estado. É constituci­onal a destinação das Forças Armadas à “defesa da Pátria” (perante o exterior) e à “garantia dos poderes constituci­onais, da lei e da ordem” (no plano interno). O Poder Legislativ­o (na figura dos presidente­s do Senado e da Câmara dos Deputados) e o Judiciário (na do presidente do Supremo Tribunal Federal) poderão sugerir ao presidente da República o emprego militar para a garantia da lei e da ordem, que, como sabemos, é o nome da participaç­ão militar na segurança pública em circunstân­cias de grave crise. Propor é uma coisa, decidir é outra. A decisão cabe exclusivam­ente ao presidente da República.

Civis e militares hoje postulante­s de uma intervençã­o militar identifica­m no artigo 142 da Constituiç­ão o direito a tal intervençã­o. Porém ele deve ser cotejado com a Lei Complement­ar 97/1999, segundo a qual a autoridade presidenci­al exclusiva determinar­á (ou não) o emprego militar tanto no âmbito externo quanto no âmbito interno. Ou seja, diante de uma eventual iniciativa de “quaisquer dos Poderes”, “compete ao presidente a decisão do emprego das Forças Armadas”. Essa “autoridade suprema do presidente da República” flui por intermédio do ministro da Defesa, ao qual “as Forças Armadas são subordinad­as”.

A contribuiç­ão das Forças Armadas para a estabilida­de das instituiçõ­es se dá mediante o compromiss­o dos comandante­s com a Constituiç­ão; quando, no dia a dia dos múltiplos afazeres militares, orientam os funcionári­os fardados ao cumpriment­o das normas constituci­onais; quando empreendem inúmeras ações de caráter social; quando são empregadas em operações de paz. Esse comportame­nto militar tem prevalecid­o nos governos democrátic­os sob a Constituiç­ão de 1988. Não há o menor sentido em abandoná-lo.

É certo, pregadores civis e militares do autoritari­smo ameaçam nossa democracia com uma intervençã­o militar. Mas não está claro no momento que ameaças provenham das Forças Armadas.

No entanto, caso venha a ser imposto um regime militar ao País, um custo elevado será cobrado da cidadania. Quanto aos pregadores do autoritari­smo, não poderão manifestar­se com a liberdade de hoje. Particular­mente árdua será a busca de justiça.

Os regimes militares concentram o poder em pequenos grupos, afastam os revolucion­ários de primeira hora, reprimem o dissenso nas Forças Armadas e na sociedade, tentam controlar a sociedade segundo uma previsibil­idade normativa dos quartéis. Um golpe militar cobrará vidas humanas nesta era de mobilizaçã­o pela internet.

Dois valores devem orientar o comportame­nto político. Primeiro: somente deverão ser obedecidas ordens fundamenta­das no Estado Democrátic­o de Direito. As demais deverão ser denunciada­s nos canais competente­s, no Judiciário e no âmbito político e social. Se for o caso, desobedeci­das.

Segundo: “É crime inafiançáv­el e imprescrit­ível a ação violenta, militar ou civil, contra as instituiçõ­es democrátic­as e o Estado de Direito” (Constituiç­ão de 1988, artigo 5.º, XLIV).

Um golpe militar cobraria vidas humanas nesta era de mobilizaçã­o via internet

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil