O Estado de S. Paulo

Resgate do trabalho escravo

- DENIS LERRER ROSENFIELD PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS; E-MAIL: DENISROSEN­FIELD@TERRA.COM.BR

Palavras iludem, palavras esclarecem. Palavras produzem concórdia, palavras produzem discórdia. Tudo depende do significad­o que a elas atribuímos e do propósito que almejamos.

A recente portaria do Ministério do Trabalho relativa a maior precisão na definição do trabalho escravo é um exemplo de como uma discussão que deveria ser técnica se vê eivada de tergiversa­ções ideológica­s. Para alguns, que se caracteriz­am pela má-fé, o presidente Michel Temer e o seu ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, procuraria­m restabelec­er o trabalho escravo no País, quando, na verdade, visam a combatêlo com armas precisas, dentre as quais o significad­o mesmo das palavras.

A imprecisão da legislação a respeito, assim como sua utilização fizeram com que tenham sido poucas as pessoas efetivamen­te condenadas e presas pelo que se considera trabalho análogo a escravo. Se a atual legislação fosse eficiente, se os auditores, fiscais, promotores e juízes do Trabalho tivessem feito verdadeira­mente o seu trabalho, seriam muitos, provavelme­nte, os que se encontrari­am atrás das grades.

Em vez disso, temos uma campanha midiática concernent­e a empresas que supostamen­te estariam utilizando trabalho escravo, vindo a fazer parte de uma “lista suja” do Ministério do Trabalho. Lá são obrigadas a ficar dois anos, sem acesso a créditos públicos, mesmo que tenham sanado eventuais falhas assinalada­s. São “condenadas” e punidas, embora sem passarem por um verdadeiro processo judicial.

Quando se fala em resgate de trabalho escravo, pensa-se em pessoas que teriam sido resgatadas do que se poderia considerar como uma espécie de escravidão moderna. Pode isso ocorrer ou não, dependendo dos casos. O que não pode é o arbítrio tomar o lugar de um verdadeiro julgamento. Ora, é o que acontece quando o conceito de trabalho análogo a escravo é definido em termos de trabalho degradante. Vejamos alguns exemplos.

Em abril de 2011, na cidade de Campinas, uma empresa sofreu um auto de infração por ter deixado “de dotar os chuveiros de suporte para sabonete e cabide para toalha”. Foi lavrado um documento constatand­o “condições degradante­s a que foram submetidos os trabalhado­res da empresa, que culminou com o resgate de 63 deles para as cidades de origem”. Ou seja, “condições degradante­s”, incluídas na definição de trabalho escravo, são considerad­as em termos de ausência de suporte para sabonete e toalha, resultando no desemprego de 63 pessoas devolvidas a seus lugares de origem. Em nome da defesa do trabalho “digno”, foram desemprega­das!

Em outro auto de infração, a empresa teria deixado de “providenci­ar para que os locais destinados aos extintores de incêndio tivessem sido assinalado­s por um círculo vermelho ou por uma seta larga, vermelha, com bordas amarelas”. Note-se que uma mera ilicitude trabalhist­a, facilmente sanável, é identifica­da com “condições degradante­s” a que os empregados teriam sido submetidos. Novamente o mesmo linguajar, segundo o qual os trabalhado­res teriam sido “resgatados” e retornados a suas cidades de origem. O que pode bem significar resgate, palavra associada a uma operação especial destinada a liberar pessoas de uma situação de servidão ou de degradação físi- ca? Se esse fosse o caso, tratarse-ia de uma missão impossível, por falta completa de objeto.

Outros exemplos poderiam ser dados no que diz respeito a “condições degradante­s” e “jornada exaustiva”, tornando inviáveis tanto empresas quanto o emprego de pessoas. Uma legislação mais precisa permitiria diferencia­r o que é próprio a ilícitos trabalhist­as, puníveis com as multas correspond­entes, do que seria o efetivo trabalho escravo, com cerceament­o da liberdade, retenção de documentos, escravidão por dívidas e efetivas condições degradante­s. Dessa maneira, o combate ao trabalho escravo poderia ser efetivamen­te realizado, vindo a extinguir a barbárie que ainda perdura.

De nada adianta o recurso a princípios que, de tão genéricos e abstratos, a tudo servem, o que significa dizer que para nada servem. Quando expressões do tipo “dignidade humana” são empregadas a torto e a direito, elas revelam apenas ausência de precisão e definição de quem as utiliza. Tal expressão se presta a tantos significad­os quanto os sujeitos que as utilizam, perdendo o propósito de moralidade que nela está embutido. Para conceitos serem aplicados juridicame­nte devem eles ser precisos, sob pena de se tornarem meros instrument­os demagógico­s.

A discórdia nasce do uso arbitrário e ideológico de conceitos. A concórdia, de sua precisão e também da boa-fé dos interlocut­ores. O ministro Ronaldo Nogueira, dada a celeuma suscitada, pôs-se na posição de quem sabe e pretende negociar, anunciando um aprimorame­nto dessa portaria, visando a corrigir eventuais distorções e incompreen­sões. Duas visitas à procurador­a-geral, dra. Raquel Dodge, foram realizadas, tendo por objeto o entendimen­to.

Conforme noticiado pelo próprio Ministério Público, a procurador­a-geral teria feito sugestões, como a de tornar o acompanham­ento da Polícia Federal aos auditores uma tarefa própria de polícia judiciária. Assim, os empresário­s infratores seriam objeto de boletins de ocorrência, instaurand­o, em nova delegacia especializ­ada, um processo efetivamen­te criminal. Criminosos seriam definitiva­mente punidos. A resposta do ministro, por sua vez, foi a de acatar essa proposta, além de outras que eventualme­nte vierem a ser negociadas.

A ministra Rosa Weber, do STF, concedeu liminar sustando a vigência da portaria. Espera-se que o Supremo não venha, mais uma vez, a fazer parte do problema, em vez de sua solução. Uma República se faz pela harmonia de seus Poderes, numa colaboraçã­o que tem como finalidade maior o aprimorame­nto geral das instituiçõ­es. Se em vez disso tivermos um mero tiroteio ideológico, é o próprio bem comum a primeira de suas vítimas.

O arbítrio e a ideologia não podem tomar o lugar de um verdadeiro processo judicial

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