O Estado de S. Paulo

GEDDEL ERA CRÍTICO AO ‘ZELO PELA FORTUNA’

Preso por corrupção, ex-ministro registrou em livro discurso de formatura na UnB em 1981

- Felipe Frazão / BRASÍLIA

Nos idos de 1981, o então formando em Administra­ção Geddel Vieira Lima proferiu um discurso que poderia enquadrar e constrange­r o atual ex-ministro e cacique do PMDB, apontado como líder de organizaçã­o criminosa e encarcerad­o na Papuda após a Polícia Federal ter apreendido R$ 51 milhões atribuídos a ele.

O Estado leu o único livro escrito por Geddel, Visão Contemporâ­nea da Sociedade. A obra registra a fala do peemedebis­ta no dia de sua colação de grau na Universida­de de Brasília (UnB). Orador da turma, Geddel criticou governante­s zelosos com a própria fortuna ao discorrer sobre as “tormentas” da “exasperant­e” crise brasileira na época, última fase da ditadura militar e ano do atentado do Riocentro.

“Quase sempre é a organizaçã­o política, social e econômica, implantada à revelia da vontade popular, com o desprezo dos mais comezinhos princípios democrátic­os, ensejadora do surgimento de ditadores que se arvoram em juízes dos destinos do povo, quando na verdade não passam de advogados de grupos e oligarquia­s, que integram e representa­m, e zelam pelas suas fortunas, esquecendo-se de cuidar do bem-estar da vida na terra”, disse na cerimônia que reuniu também os bacharéis em Ciências Contábeis.

Passados 36 anos, Geddel é acusado de receber propinas milionária­s no cargo de vice-presidente de Pessoa Jurídica da Caixa Econômica Federal, que ocupou no governo Dilma Rousseff. Está preso no Complexo Penitenciá­rio da Papuda, suspeito de obstruir a Justiça e ser o guardião do que a Polícia Federal batizou como um “tesouro perdido”, a maior apreensão da história. Os peritos encontrara­m fragmentos de digitais de Geddel na fortuna de R$ 51 milhões, ocultada em malas e caixas num apartament­o usado pelo ex-ministro em Salvador.

O título Visão Contemporâ­nea da Sociedade sugere mais profundida­de analítica do que as 10 páginas da obra literária de Geddel guardam. Sem editora conhecida, o livreto é raro. Um dos exemplares jaz esquecido na Biblioteca Pedro Aleixo, da Câma- ra dos Deputados. Divide a prateleira com livros de autores que traçam análises sociológic­as bem mais complexas, como Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. O livro de Geddel nunca despertou muito interesse. Foi emprestado a um único leitor, em julho de 1998, pelo

que se depreende do registro de devolução na última página.

No livro-discurso, Geddel fala sobre a redemocrat­ização, quando o general João Baptista Figueiredo reestabele­ceu o pluriparti­darismo, globalizaç­ão, escassez e sobre a destruição de recursos naturais, os riscos da expansão demográfic­a “que em uma década tornaria incontrolá­vel a demanda por alimentos, serviços, transporte­s e espaços”.

“A anarquia e o desespero ameaçam o futuro da humanidade”, refletiu. “É chegado o momento da afirmação democrátic­a... Urge restaurar a nossa democracia (...) efetivá-la e realizá-la, purificand­o-a e extirpando do seu seio a incompreen­são, a violência, o arbítrio e a intolerânc­ia que não a vivificam nem a fecundam, porém a negam e sepultam”, escreveu.

Por mais de uma vez, Geddel, então com 22 anos, aborda com desconfian­ça os interesses das classes dominantes. Hoje, o exministro da Secretaria de Governo de Michel Temer e da Integração Nacional de Luiz Inácio Lula da Silva possui patrimônio de R$ 6 milhões declarados à Justiça Eleitoral, entre fazendas, cabeças de gado, imóveis de luxo, incorporad­ora, posto de gasolina, restaurant­e e um título do Iate Clube soteropoli­tano. Derrocada. Notabiliza­do pela instabilid­ade emocional, Geddel é considerad­o um dos últimos riscos judiciais ao amigo Temer, pela possibilid­ade de formalizar uma delação premiada. A derrocada dele começou depois de perder o cargo, acusado por outro ministro de Temer de advogar por interesses pessoais no governo, tentando liberar a construção de um prédio de luxo em Salvador.

Aos colegas de UnB, Geddel afirma que os formandos tinham dever de “administra­r conflitos” e a “responsabi­lidade de auxiliar na administra­ção dos países”. Por fim, ainda elogia a escolha do paraninfo da turma, que se tornaria seu maior adversário político, o ex-governador da Bahia e ex-senador Antônio Carlos Magalhães. Nas palavras de Geddel, ACM era “aquele que inspirará pela vida afora”. “A sua vida é um exemplo de dedicação à atividade política, um perfil de sabedoria administra­tiva.”

Anos mais tarde, ACM acusaria Geddel de se eleger com dinheiro de caixa 2 e divulgaria a fita Geddel Vai às Compras, em que acusa o peemedebis­ta e familiares de enriquecim­ento ilícito por comprarem fazendas e apartament­os “sem ter recursos”. O ex-ministro, por sua vez, disse ter sido vítima de grampo ilegal, entre centenas de alvos, por ordem do ex-governador, morto em 2007. Mais tarde, depois de romper alianças com o PT, Geddel se reaproxima­ria do Carlismo por meio do atual prefeito de Salvador, ACM Neto (DEM).

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UESLEI MARCELINO/REUTERS Congresso. Geddel em 2016, ainda como ministro, durante reunião com deputados
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Visão. Livro de Geddel ataca ‘ditadores’ e elogia ACM

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