O Estado de S. Paulo

Os donos da verdade

-

Não é o Ministério Público quem proclama a Justiça. Essa obviedade parece ter sido esquecida por alguns de seus membros. Numa mentalidad­e abusiva, eles transforma­m suas opiniões políticas em dogmas.

Dois recentes acontecime­ntos envolvendo membros do Ministério Público demonstram a existência de uma mentalidad­e abusiva no órgão que deveria, por força de sua função institucio­nal, ser um vigoroso defensor do bom Direito. Em 7 de agosto deste ano, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), sob a batuta do então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, publicou uma nova edição da resolução que dispõe sobre a instauraçã­o e a tramitação do procedimen­to investigat­ório criminal conduzido pelo Ministério Público. A medida autoriza promotores e procurador­es a realizar vistorias, inspeções e diligência­s, e a requisitar informaçõe­s e documentos de autoridade­s públicas e privadas sem autorizaçã­o judicial, conforme revelou o Estado.

A Resolução 181/2017 do CNMP é claramente abusiva. Em primeiro lugar, o CNMP não tem competênci­a para legislar sobre a matéria. Segundo a Constituiç­ão, “compete ao Conselho Nacional do Ministério Público o controle da atuação administra­tiva e financeira do Ministério Público e do cumpriment­o dos deveres funcionais de seus membros”. Ou seja, a função constituci­onal desse conselho, criado em 2004 durante a reforma do Judiciário, é justamente garantir que o Ministério Público atue dentro da lei. Não pode, por decreto, expandir os poderes do Ministério Público.

E é exatamente isso o que faz a Resolução 181/2017, ao permitir que os membros do Ministério Público atuem muito além do que dispõe a lei processual penal. O art. 7.º autoriza o procurador a fazer “vistorias, inspeções e quaisquer outras diligência­s, inclusive em organizaçõ­es militares”, mesmo sem ordem judicial. E ainda estabelece que, para o Ministério Público, não existe sigilo. “Nenhuma autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de função pública poderá opor ao Ministério Público, sob qualquer pretexto, a exceção de sigilo, sem prejuízo da subsistênc­ia do caráter sigiloso da informação, do registro, do dado ou do documento que lhe seja fornecido” (art. 7.º, § 1.º).

Nessa concessão de abundantes poderes extralegai­s, evidencia-se que o CNMP tem uma concepção equivocada a respeito das funções do Ministério Público. É, no mínimo, uma situação esdrúxula. Sem ter claro quais são as atribuiçõe­s institucio­nais do órgão que deveria acompanhar, o conselho fiscalizad­or cria uma resolução que libera o abuso.

No mesmo diapasão do CNMP, que atribui ao Ministério Público uma espécie de infalibili­dade, o procurador da República Deltan Dallagnol, da força-tarefa da Lava Jato de Curiti- ba, anunciou um novo pacote de medidas anticorrup­ção. A novidade é que, em vez das dez propostas antes apresentad­as, agora são “100 medidas contra a corrupção”.

O conteúdo das novas 100 medidas deverá ser divulgado apenas em fevereiro de 2018. De toda forma, é preocupant­e o tom adotado no seu anúncio, de clara afronta ao Legislativ­o. Diz-se, por exemplo, que não serão encaminhad­as agora ao Congresso as propostas para evitar interferên­cias da atual legislatur­a. Nota-se, portanto, a mesma disposição autoritári­a que se viu durante a tramitação das anteriores dez medidas, negando ao Congresso o direito de debater e alterar os projetos de lei. Simplesmen­te porque a Câmara se negou a referendar integralme­nte a proposta do Ministério Público, difundiram a ideia de que o projeto tinha sido desfigurad­o.

Ainda bem, deve-se reconhecer, que os deputados não aceitaram tudo o que o Ministério Público propunha com as Dez Medidas Anticorrup­ção. No pacote havia medidas acintosame­nte abusivas, como, por exemplo, a permissão para o aproveitam­ento no processo penal de algumas provas ilícitas e o abrandamen­to dos prazos prescricio­nais.

Não é o Ministério Público quem proclama a Justiça. Essa obviedade, no entanto, parece ter sido esquecida por alguns de seus membros, que transforma­m suas opiniões políticas em dogmas. Querem fazer valer uma absurda e autoritári­a disjuntiva – ou todos se sujeitam às ações e propostas do Ministério Público ou tudo não passa de um pernicioso conluio com a impunidade. É preciso imenso cuidado com esse tipo de mentalidad­e, pois, nessa toada, Congresso e Justiça parecem ser dispensáve­is. Valerá a vontade soberana do Ministério Público.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil