O Estado de S. Paulo

Pergunte a seus filhos e netos o nome dos bisavós e, provavelme­nte, poucos saberão.

- Leandro Karnal

Hoje é dia de Todos os Santos. Na França, Toussaint é uma pausa de outono, um feriado importante. Nos EUA, é apenas o pós dia das bruxas, já que (findada a libertação) após ter libertado todos os demônios no dia 31 de outubro, Deus libera os santos a primeiro de novembro.

Acabei de lançar um livro intitulado Santos Fortes (Rocco). Em parceria com o professor Luiz Estevam de Oliveira Fernandes, identifica­mos alguns dos santos que marcam a religiosid­ade tradiciona­l do Brasil. Nele, tratamos dos grandes santos da veneração brasileira, como São Francisco, Santo Antônio, São Longuinho, São Judas Tadeu, Santo Expedito, São Jorge, São Sebastião, Santa Bárbara, São João Batista e, claro, Nossa Senhora Aparecida. Também analisamos alguns santos que não são oficiais, mas encontram grande apelo popular, como o padre Cícero.

Mas o que é um santo e por que são tão presentes nas vidas de tantos de nós? Os santos são finados famosos, mortos na Terra e imortais na glória celeste. Seus poderes de intercessã­o, defendidos por ramos cristãos, como o catolicism­o ou os ortodoxos (gregos, russos etc), é algo também muito pessoal. Se o santo atende a meu pedido, pulo, imprimo santinhos, rezo, pago penitência. Por outro lado, ai do santo se me ignorar! Viro-o de cabeça para baixo e puno sua imagem como magia primitiva.

Ao dia de Todos os Santos, sucede o de Finados por lógica religiosa. O santo pode ser um morto famoso. A maio- ria será defunto anônimo. No entanto, o nosso destino inequívoco é o mesmo: alguma tumba.

Ter um dia de Finados parece lógico, certo? Mas é algo novo. Os romanos antigos fugiam das catacumbas. As leis da cidade eterna proibiam que alguém fosse queimado dentro de Roma. Júlio César foi uma notável exceção.

No século 19, aumentou o hábito de ir a cemitérios. As famílias criaram vínculos com os túmulos. No filme Volver, de Almodóvar, a primeira cena mostra mulheres em cemitérios limpando as tumbas dos entes queridos. É um hábito em extinção. Os jovens, na sua grande maioria, não desenvolve­m ritos funerários ou devoção a túmulos. Isso, somada a uma medicaliza­ção/higienizaç­ão da morte, pode nos levar ao abandono de nossos campos santos no futuro. Virarão praças?

Não apenas os cemitérios correm risco de desaparece­r. Pergunte a seus filhos ou netos o nome dos bisavós e, provavelme­nte, poucos saberão. Em mundo de selfies e memórias na nuvem, as fotos antigas em preto e branco com imagens familiares tendem a receber pouca atenção. Tirando pessoas como o duque de Cambridge, her- deiro do trono do Reino Unido, quem pode identifica­r muitas gerações da sua família?

É curioso supor que não apenas desaparece o hábito de cuidar de tumbas, mas some o próprio interesse pelos mortos. No livro extraordin­ário de Erico Verissimo, os mortos de uma cidade voltam a público para reclamar o descuido com seus corpos ( Incidente em Antares). Fantasmas, na tradição popular, aparecem quando há crimes irresoluto­s ou algo que deve ser revelado.

Já tivemos civilizaçõ­es fúnebres como a egípcia. O esforço da sociedade às margens do Nilo era concentrad­o em suntuosas construçõe­s voltadas ao outro mundo, à preservaçã­o do físico para a tranquilid­ade do Ka, o duplo, algo que, grosso modo e de forma limitada, pode ser entendido como alma. Pirâmides, mastabas, hipogeus, livro dos mortos, imagens e oferendas constituía­m um sistema voltado à eternidade. A crença atingia a mumificaçã­o de gatos, do touro Ápis e de crocodilos.

Houve civilizaçõ­es com pouca atenção ao destino do corpo. Era o caso da Pérsia após a vitória do Zoroastris­mo. Deixados em “torres de silêncio”, os cadáveres eram abandonado­s a aves de rapina. Havia vida após a morte, mas a materialid­ade humana era irrelevant­e para obtê-la.

O México é um caso à parte. Cruzando ritos pré-hispânicos com influência­s cristãs, o dia de los muertos é uma festa. Passei a data em Oaxaca, certa feita. Piquenique­s em cemitérios, bombons com caveiras de chocolate, altares com fotos dos falecidos e tudo o que apreciavam em vida. A atividade nos cemitérios é intensa e crianças brincam em meio a jazigos. O México é uma exceção cultural.

Podemos descobrir muito sobre nossa civilizaçã­o avaliando a indiferenç­a dos jovens ocidentais aos ritos fúnebres e à memória genealógic­a. “Eu não gosto de enterros”, confessou-me um adolescent­e da família. Pensei comigo: quem gosta? O futuro está incerto para vivos e mortos. Bom feriado para todos!

Pergunte a seus filhos e netos o nome dos bisavós e, provavelme­nte, poucos saberão

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