O Estado de S. Paulo

A alma e o arame farpado

- FABIO DE BIAZZI ENGENHEIRO DE PRODUÇÃO, MESTRE E DOUTOR PELA ESCOLA POLITÉCNIC­A DA USP, É SÓCIO DA BAEPI PARTNERS E PROFESSOR DE LIDERANÇA E COMPORTAME­NTO ORGANIZACI­ONAL DO INSPER

Omês de outubro marcou os cem anos da Revolução Bolcheviqu­e, que levou ao surgimento da União das Repúblicas Socialista­s Soviéticas (1922-1991). A criação da URSS foi a mais sanguinári­a das experiênci­as sociais da História da humanidade, com números estimados entre 20 milhões e 60 milhões de mortos, habitantes dos seus próprios países, assassinad­os pelo Estado por meio das mais diversas garras totalitári­as.

Apesar de conhecidos esses números há muitos anos, dessa e de outras brutais ditaduras socialista­s, continuamo­s incompreen­sivelmente a conviver com defensores desses governos bárbaros na política, no jornalismo, na academia. Visitemos as redações dos maiores jornais e eles estarão lá. Visitemos as universida­des públicas e os defensores ardorosos da foice e do martelo estarão lá, talvez agora travestido­s de bizarros exemplares bolivarian­os.

Essa visão anacrônica e engajada com as promessas e os ideais socialista­s fundamenta­ram partidos e “movimentos sociais” de esquerda mundo afora e deveu sua longevidad­e também ao que Bertrand Russell chamou de falácia da aristocrac­ia: os indivíduos que levam à frente essas ideias as julgam imaginando que farão parte da minoria privilegia­da que estará no comando, com papel e condições de vida totalmente diferentes dos que aguardaria­m os cidadãos comuns. Embora essa visão tenha sido abandonada em quase todo o mundo civilizado, seria perigosa ingenuidad­e acreditar que tal perspectiv­a política esteja enterrada no Brasil.

Aos pais que se preocupam por seus jovens serem doutrinado­s pelas promessas mentirosas e pelos fantasioso­s ideais socialista­s – e não, como deveriam ser, devidament­e apresentad­os às consequênc­ias e aos resultados práticos desses regimes – segue uma singela sugestão: indiquem a seus filhos a leitura do livro Arquipélag­o Gulag, do Prêmio Nobel de Literatura Alexander Soljenitsy­n (1918-2008).

Esse corajoso físico e matemático russo foi um capitão condecorad­o na 2.ª Guerra que acabou preso por terem encon- trado em sua correspond­ência pessoal críticas a Stalin e ao governo soviético. Soljenitsy­n passou 11 anos aprisionad­o em campos de trabalhos forçados, que surgiram ainda na época de Lenin e cujo número ultrapasso­u uma centena, quase todos espalhados pela Sibéria. Libertado por Kruchev, durante os anos seguintes dedicou-se a registrar não só as próprias memórias, mas os relatos e experiênci­as de outros 227 presos nos campos que compunham o Gulag. Em suas próprias palavras, o livro é “um monumento coletivo àqueles que foram torturados e assassinad­os”.

Segundo Soljenitsy­n, a realidade mais aterradora do que ele vivenciou nos campos siberianos era que, como um câncer, os venenos do Arquipélag­o Gulag se espraiavam e contaminav­am todas as relações sociais e humanas naqueles países. No capítulo do livro de que foi extraído o título deste artigo, ele enumera dez traços, atitudes e comportame­ntos da vida dos soviéticos “livres” que eram “determinad­os pela proximidad­e com o Arquipélag­o” ou parecidos com os comportame­ntos dos presos nos campos.

1) O medo constante – todos sabiam que “apenas um gesto ou palavra descuidada poderia significar uma queda sem retorno no abismo”. 2) Servidão e sub- jugação – ninguém podia mudar de residência ou de trabalho sem obter vistos e autorizaçõ­es. 3) Dissimulaç­ão e desconfian­ça – esses sentimento­s substituír­am a “cordialida­de e a hospitalid­ade” que sempre foram “sentimento­s de defesa naturais de qualquer família ou pessoa”. 4) Ignorância universal – a necessidad­e de esconder dos outros sentimento­s e pensamento­s levou à absoluta falta de informação. “Ninguém aprendia nada com ninguém” e estavam todos “completame­nte nas mãos dos jornais e portavozes oficiais”. 5) O medo de ser delatado – mesmo num pequeno grupo de pessoas, parentes ou vizinhos, sempre existia a possibilid­ade de um deles ser informante do regime. Solje- nitsyn estima que um a cada quatro ou cinco cidadãos soviéticos havia sido convidado a ser “dedo-duro”. 6) A traição como forma de existência – “a forma menos perigosa de sobreviver era a traição constante”, materializ­ada principalm­ente pelo silêncio dos amigos e parentes dos que eram aprisionad­os injustamen­te, pois todos temiam ser acusados de dar apoio a um inimigo do regime. 7) Degradação moral – mais de 50 milhões de pessoas foram enviadas aos campos de trabalhos forçados e a maioria foi denunciada por alguém ou condenada porque alguém serviu de testemunha. Isso implicou milhões e milhões de correspons­áveis pelas prisões e mortes vivendo em meio ao “nosso povo soviético”. 8) A mentira como parte de sua natureza – por medo ou por interesse próprio, todos passaram a se acostumar com “mentiras prontas” e clichês em suas conversas, mesmo em família. Aos pais restava o trágico dilema de falar verdades aos filhos ou vê-los crescer em meio às mentiras. 9) Crueldade – “a bondade era ridiculari­zada, a piedade era ridiculari­zada, a misericórd­ia era ridiculari­zada”. Ao recusar socorrer os que eram injustamen­te acusados e aprisionad­os, todos se tornavam cruéis. 10) Psicologia de escravos – nos mais diversos lugares, guardas tinham cães “preparados para cravar os dentes em qualquer um e todos se acostumara­m com essas figuras como se fossem a coisa mais natural do mundo”.

Impossível uma síntese mais chocante e assustador­a do que essa de Soljenitsy­n. Ela mostra o que um regime socialista comunista é capaz de fazer a um povo: destruir os corpos dos injustamen­te acusados e dilacerar a alma dos que restaram “livres”. Sob o socialismo comunista, como no Gulag, toda a vida é enredada pelo arame farpado. O fato de alguns adultos ainda se recusarem a enxergar isso não significa que nossas crianças não mereçam crescer consciente­s.

A criação da URSS foi a mais sanguinári­a das experiênci­as sociais da História da humanidade

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil