O Estado de S. Paulo

Cadastro positivo de crédito avança

- ROBERTO MACEDO ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), É CONSULTOR ECONÔMICO E DE ENSINO SUPERIOR

Primeiro, um breve histórico do cadastro negativo (CN) e o porquê desse nome. É praticado há cerca de dois séculos no Brasil. Na centenária Associação Comercial de São Paulo (ACSP) aprendi que nos primórdios do CN havia reuniões de comerciant­es para discutir o status de seus devedores na então chamada praça, que também significa mercado, hoje o termo mais usado.

Com o avanço da economia, das instituiçõ­es financeira­s e das tecnologia­s de informação e comunicaçã­o, reuniões desse tipo evoluíram para cadastros formais e troca dos respectivo­s dados. Tais reuniões e cadastros estiveram na origem de muitas associaçõe­s comerciais que surgiram no País. A ACSP, por exemplo, surgiu em 1894.

Ela e outras do mesmo tipo instituíra­m formalment­e os serviços de proteção ao crédito (SPCs) onde as informaçõe­s sobre devedores inadimplen­tes ou negativado­s são cadastrada­s e abertas à consulta de comerciant­es, instituiçõ­es financeira­s e outros interessad­os. Aos negativado­s o crédito é usualmente negado.

O CN tem problemas que o cadastro positivo (CP) procura contornar. Um deles é que não permite identifica­r o total que uma pessoa, empresa ou outra instituiçã­o qualquer já deve a seus vários credores, mesmo sem ser “negativada”. Essa informação é importante para avaliar o risco de uma inadimplên­cia futura e prevenir-se contra ela.

O CN também não permite identifica­r o histórico dos bons pagadores, ou seja, os que não são negativado­s. Como as taxas de juros incluem componente associado ao risco de cada operação de crédito, quanto maior esse risco maior a taxa cobrada dos devedores. Isso faz sentido. Mas como conhecer os bons pagadores para favorecê-los com taxas menores? Sem esse conhecimen­to quem concede o crédito acaba fixando taxas de juros levando em conta, se tanto, somente a avaliação que isoladamen­te faz do desempenho do devedor em operações passadas.

A avaliação também pode ser feita pelo risco médio do grupo em que o cliente está inserido e pela natureza da operação realizada. Por exemplo, no crédito consignado, como há desconto das prestações na folha de pagamentos do empregador, o risco é menor. Se é para aposentado­s, funcionári­os públicos ou trabalhado­res de instituiçõ­es com vínculo empregatíc­io mais estável, o risco é menor ainda. Nesses casos os devedores se credenciam a juros menores do que, por exemplo, em operações de crédito pessoal. Neste, a forma de pagamento voluntária e o comportame­nto médio dos tomadores já denota um risco maior.

Entretanto, no conjunto das operações de crédito, exceto por essa divisão por grupos de risco, os bons devedores não são beneficiad­os, pois falta consolidar um cadastro positivo que mostre o desempenho de cada um deles. Mesmo dentro desse grupo há pagadores melhores e piores. No CP eles recebem notas que diferencia­m o seu comportame­nto nas operações de crédito. Com essa nota o devedor também avalia o seu próprio status, com o CP contribuin­do assim para a educação financeira do devedor e para evitar o excesso de endividame­nto.

Em síntese, pode-se dizer que havendo apenas o cadastro negativo os bons devedores acabam pagando pelos riscos dos pecadores. Com o cadastro positivo o crédito fluiria ainda mais para os bons pagadores e juros menores estimulari­am a expansão do crédito.

Em face dessas vantagens, em 2011 o CP foi criado no Brasil pela Lei n.º 12.414. Mas, como outras leis brasileira­s, essa não “pegou”. A razão principal é que ela determina que a inscrição nesse cadastro depende da anuência do inscrito. Mais precisamen­te, ele mesmo precisa realizar sua inscrição no CP. Soube que para um potencial de cadastrado­s estimado em mais de uma centena de milhões apenas cerca de 6 milhões se inscrevera­m.

A boa notícia é que na quartafeir­a da semana passada foi aprovado no Senado projeto de lei que altera a citada lei particu- larmente no que diz respeito a essa adesão ao CP. Em lugar de realizarem a adesão voluntaria­mente, todas as pessoas envolvidas em operações de crédito serão inscritas automatica­mente. Informadas dessa inscrição, poderão pedir sua exclusão.

Um aspecto interessan­te da aprovação desse projeto pelo Senado é que ela veio no mesmo mês em que foi anunciada, no dia 3, a outorga do Prêmio Nobel de Economia ao americano Richard Thaler, cujos estudos e experiment­os contribuír­am para integrar ainda mais a psicologia com a economia, num campo conhecido como economia comportame­ntal. Entre outros aspectos, ela ressalta que as pessoas têm racionalid­ade limitada. Assim, embora valesse a pena que devedores com bom comportame­nto creditício se inscrevess­em no CP em face de suas vantagens, como a perspectiv­a de menores taxas de juros, a maioria deles não fez isso por desleixo, procrastin­ação ou falta de informação, entre outras razões. Thaler recomendou o que chamou, em inglês, de “nudge”, um empurrãozi­nho para que uma pessoa se mova numa direção considerad­a convenient­e. Nessa linha, como na inscrição em planos corporativ­os de previdênci­a privada, a adesão automática, com opção de saída, vem sendo adotada em lugar da voluntária, havendo evidências de que isso aumenta muito a inscrição daqueles a quem esse empurrãozi­nho é dirigido.

O projeto passará agora à Câmara dos Deputados, onde se espera que seja aprovado e suba à sanção presidenci­al, dados os méritos de que se reveste. Talvez aí precise de um empurrão, de outra natureza, para andar nessa lenta Casa. Também será necessário outro, mesmo se aprovado e sancionado: para mudar a enraizada cultura das instituiçõ­es que oferecem crédito, envolvendo seus donos, diretores e funcionári­os. Isso para que os bons pagadores sejam efetivamen­te beneficiad­os com juros menores do que os cobrados daqueles que não cuidam de seu prestígio como devedores.

Hoje só funciona o negativo, bons pagadores não se credenciam a juros menores

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