O Estado de S. Paulo

A reforma da lei de recuperaçã­o de empresas

- MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS E FÁBIO ULHOA COELHO RESPECTIVA­MENTE, DESEMBARGA­DOR DO TJSP, ATUAL CORREGEDOR GERAL DA JUSTIÇA, PROFESSOR DE DIREITO COMERCIAL DA USP E DA PUC-SP; E ADVOGADO, PROFESSOR DE DIREITO COMERCIAL DA PUC-SP

Empresas fortes e saudáveis beneficiam toda a coletivida­de. Criam postos de trabalho, tributos e riqueza, além de dinamizare­m a economia. As empresas cumprem assim a sua função social, que é um importante princípio j urídico derivado da Constituiç­ão.

Em razão da função social das empresas, quando a sobrevivên­cia delas está ameaçada por fatores externos, como as crises macroeconô­micas, interessa a todos que a lei tenha mecanismos adequados de preservaçã­o da organizaçã­o empresaria­l. Trabalhado­res, consumidor­es, fisco, outros agentes econômicos e toda a sociedade ganham com a eficiente superação da crise econômico-financeira, quando ela assalta empresas viáveis.

No Brasil, desde 2005 contamos com uma boa lei de recuperaçã­o de empresas. Ela tem cumprido sua finalidade básica e atende ao interesse geral de manutenção das empresas que dispõem de recursos tecnológic­os, materiais e humanos valiosos, mas enfrentam dificuldad­es superáveis. Apesar de sua reconhecid­a qualidade técnica, a lei, depois de transcorri­dos 12 anos, precisa ser alterada.

Diversas alterações são oportunas ou mesmo necessária­s, como o estímulo ao financiame­nto da empresa em dificuldad­e (DIP Finance), a contagem dos prazos processuai­s em dias corridos, a disciplina da assembleia dos credores, o aprimorame­nto da recuperaçã­o extrajudic­ial e a recuperaçã­o dos grupos empresaria­is. Mas há um assunto em especial, que tem sido lembrado como o mais urgente: a denominada “trava bancária”.

A “trava bancária” consiste no tratamento específico dado a certos créditos provenient­es de financiame­nto bancário. Quando o banco empresta dinheiro à empresa, recebendo um tipo específico de garantia (a alienação fiduciária), a lei determina que a operação não poderá ser incluída em recuperaçã­o judicial. Isto é, o crédito do banco que conta com esse tipo de garantia não pode ser reduzido nem ter o seu vencimento prorrogado, caso a empresa devedora ingresse em juízo pedin- do a recuperaçã­o.

Em suma, quando o banco recebe a garantia da alienação fiduciária, seu crédito não participa da reestrutur­ação do passivo da empresa em crise. É inteiramen­te preservado. Já o crédito bancário garantido por outros meios – aval do sócio, penhor, hipoteca, caução de títulos, etc. – está sujeito à recuperaçã­o judicial da empresa financiada. Este crédito associado a outras garantias, assim, pode ter o seu valor reduzido ou o vencimento aumentado, se for decidido que isso é necessário para a recuperaçã­o da empresa em crise.

Esse tratamento diferencia­do segundo o tipo de garantia tem uma justificat­iva técnica bastante clara. Como Pontes de Miranda já havia destacado nos anos 1960, o “direito real em garantia” é categoria diversa do “direito real de garantia”. No primeiro caso o bem dado em garantia passa a ser da propriedad­e do banco, enquanto no segundo ele continua no patrimônio da empresa financiada. Essa diferença é muito importante, porque o banco, ao receber um direito real em garantia (alienação fiduciária), passa a titular os direitos constituci­onais de proprietár­io sobre o bem que garante o pagamento do empréstimo, o que não se verifica no caso do direito real de garantia (penhora).

Quando, em 2005, a lei de recuperaçã­o judicial criou a “trava bancária”, a expectativ­a era de que os bancos continuass­em a oferecer variadas linhas de crédito, cobrando juros diferentes conforme a garantia. Se o empresário quisesse pagar menos juros, deveria conceder garantias mais fortes (alienação fiduciária); se não as tivesse, ou quisesse preservá-las, pagaria juros maiores, concedendo garantias menos fortes (penhor, hipoteca, etc.).

Mas, o que aconteceu? Aos poucos os bancos restringir­am bastante a oferta de linhas de financiame­nto e hoje praticamen­te só emprestam dinheiro às empresas mediante a alienação fiduciária. Já há alguns anos, assim, quando uma empresa pede a recuperaçã­o judicial, as dívidas dela com os bancos estão, em grande parte, excluídas da reestrutur­ação do passivo.

Nesse processo de restrição do financiame­nto bancário, os bancos, na verdade, passaram a exigir que a garantia recaísse sobre o faturament­o futuro da financiada, caso em que é chamada de “cessão fiduciária de recebíveis”. O crédito assim garantido está igualmente fora do alcance da repactuaçã­o demandada pela recuperaçã­o da empresa devedora.

A rigor, o próprio instituto da recuperaçã­o judicial corre risco de desmoraliz­ação se a lei não adotar alguma medida visando a alterar esse quadro. Alterações devem ser feitas para estimular as instituiçõ­es financeira­s a voltar a oferecer outras linhas de financiame­nto, com diferentes tipos de garantias, bem como desestimul­ar as empresas de transferir para os bancos a totalidade dos recebíveis. Eles representa­m um dos mais valiosos recursos de que necessitar­ão para se recuperar, se forem surpreendi­das por uma crise.

Aliás, um importante passo nessa direção pode ser apontado na recente Lei n.º 13.746/17, que cria o registro central de garantias sobre ativos financeiro­s. Ele poderá, no futuro, fornecer dados que auxiliem no controle e prevenção do superendiv­idamento da empresa.

Desde o início deste ano o Ministério da Fazenda tem se dedicado à elaboração de um projeto de alteração da lei de recuperaçã­o de empresas. O processo, conduzido por agentes públicos competente­s, contou com a colaboraçã­o de juristas especializ­ados em direito falimentar-recuperaci­onal. Além disso, abrangeu ampla consulta aos setores interessad­os e aos profission­ais da área. O resultado não é ainda conhecido, mas espera-se a publicação do projeto de lei para breve, contemplan­do as mudanças de que o instituto necessita, no interesse da economia brasileira.

A mudança que tem sido lembrada como a mais urgente é a relativa à chamada ‘trava bancária’

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