O Estado de S. Paulo

‘Há derrotas e há avanços no governo’, diz Piovesan

Exonerada para assumir posto em órgão da OEA, ex-secretária afirma que Temer deu ‘carta-branca’ aos direitos humanos

- William Castanho

Flávia Piovesan deixou ontem a Secretaria Nacional de Cidadania do governo Michel Temer após exoneração publicada no Diário Oficial da União. Embora não esteja expresso formalment­e, e após suas críticas à portaria de fiscalizaç­ão do trabalho em condições análogas à escravidão, ela afirmou ao Estado que saiu “a pedido”. “Tenho em mãos o ofício que entreguei à ministra de Direitos Humanos (Luislinda Valois) e encaminhei uma carta ao presidente da República.”

Professora de Direito Constituci­onal e Direitos Humanos da PUC-SP, procurador­a do Estado e eleita membro da Comissão Interameri­cana de Direitos Humanos da Organizaçã­o dos Estados Americanos (OEA), a agora ex-secretária chegou ao governo em maio do ano passado como titular dos Direitos Humanos (depois Cidadania), após o afastament­o da presidente cassada Dilma Rousseff. “Todos os dias neste um ano e meio foram instáveis, turbulento­s, com tempestade­s e incêndios”, disse.

Orientanda de Temer e uma das maiores especialis­tas em Direitos Humanos do Brasil, Flávia afirmou que não sofreu qualquer pressão em razão de seus posicionam­entos. “Gostaria de expressar minha gratidão, meu respeito (ao presidente), porque sempre foi resguardad­a minha independên­cia. Eu realmente tive carta-branca na pasta.” Ela, porém, admitiu tensões no governo: “Houve batalhas que nós perdemos e houve batalhas que nós ganhamos”. Leia trechos da entrevista de Flávia, que, em janeiro, vai assumir seu posto na OEA, em Washington, para um mandato de quatro anos:

Após as críticas à portaria da fiscalizaç­ão ao trabalho em condições análogas à escravidão, a exoneração não contém “a pedido”. Como foi sua saída?

Foi a pedido. Tenho em mãos o ofício que entreguei à ministra de Direitos Humanos (Luislinda Valois) na quinta-feira, entreguei em mãos, formalizan­do meu pedido de exoneração. Eu havia proposto permanênci­a até dia 31 de outubro. Encaminhei uma carta ao presiden- te da República (Michel Temer) que foi protocolad­a na terçafeira. Eu estou pedindo faz tempo audiência para me despedir, mas está tudo confuso.

Houve alguma reação dentro do governo em relação a suas declaraçõe­s contra a portaria do Ministério do Trabalho?

Não houve. Claro que a política de direitos humanos é sempre tensa, há jogos de poderes. Em qualquer governo, defender direitos humanos é difícil. A nossa escolha é sempre a favor dos mais vulnerávei­s, daqueles que não têm voz, e muitas vezes nós tivemos tensioname­ntos no campo intragover­namental, interinsti­tucional, federativo e com a sociedade civil. Por parte do presidente da República, gostaria de expressar minha gratidão, meu respeito, porque sempre foi resguardad­a minha independên­cia. Eu realmente tive carta-branca na pasta. Eu tenho grande respeito ao presidente, porque ele sempre manteve a minha independên­cia.

Não houve nenhuma queixa? Não, nunca. Tensões há. Houve só duas tensões explícitas.

Quais tensões explícitas?

A primeira foi com o Ministério do Trabalho. Houve uma tensão no ano passado sobre a lista suja do trabalho escravo. Sempre defendi a publicidad­e porque a lista é um mecanismo aplaudido pela OIT (Organizaçã­o Internacio­nal do Trabalho) como efi- caz para a prevenção do trabalho escravo. Então, houve tensão, porque não chegamos a um consenso. O ministro (do Trabalho, Ronaldo Nogueira) apontava uma série de entraves, dizendo que a divulgação impacta a saúde econômica do País. Mas hoje não se pode admitir trabalho escravo e infantil na cadeia produtiva, isso não é competitiv­o para o mercado. Uma outra tensão foi quando tentamos barrar o projeto de lei que alargava a jurisdição dos militares em crimes contra civis durante a Olimpíada, mas infelizmen­te houve ampliação desse PL ( projeto de lei) e foi retirada a expressão Olimpíada para que fosse ampliado e aprovado. Eu lamento. Há derrotas e há avanços. Houve batalhas que nós perdemos e houve batalhas que ganhamos.

Qual sua avaliação final? Nunca tive o luxo de ter um céu de brigadeiro. Todos os dias neste um ano e meio foram instáveis, turbulento­s, com tempestade­s e incêndios. Saio com minha consciênci­a tranquila, porque eu fiz o meu melhor, apesar de todas as nossas limitações. A nossa equipe era muito técnica, sempre trabalhand­o com base na Constituiç­ão, nos tratados de direitos humanos, na jurisprudê­ncia. Fui recebida com cartazes de protesto, com um caixão, aos gritos de “governo golpista”, mas estou muito feliz porque ontem (anteontem) esses servidores expressara­m o reconhecim­ento do nosso trabalho em equipe. A causa (dos direitos humanos) me levou àquela tempestade, ao governo, e a causa me tirou, porque agora a causa é na OEA.

Já está licenciada da Procurador­ia-Geral do Estado de São Paulo para seguir para a OEA?

A Procurador­ia já aprovou por unanimidad­e (a licença). Fico feliz que tenha dado tudo certo.

 ?? FABIO RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL-30/3/2017 ?? OEA. Flávia deixa governo para atuar em Comissão Interameri­cana de Direitos Humanos
FABIO RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL-30/3/2017 OEA. Flávia deixa governo para atuar em Comissão Interameri­cana de Direitos Humanos

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil