O Estado de S. Paulo

As microrrupt­uras institucio­nais

- EVERARDO MACIEL CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)

Uma obra da engenharia civil, salvo em casos de imprevisív­eis desastres naturais, não desmorona sem antes emitir sinais, que isoladamen­te podem nada significar, mas que, no conjunto, constituem evidências de algum comprometi­mento. Por analogia, o tecido institucio­nal brasileiro vem revelando disfunções que, conquanto não sinalizem uma indesejada ruptura, inviabiliz­am, no médio prazo, qualquer perspectiv­a de desenvolvi­mento e paz social. São as microrrupt­uras institucio­nais. Destaco algumas dessas disfunções.

A Constituiç­ão de 1988, por uma manobra política, afastou-se da pretensão originalme­nte parlamenta­rista para fixar-se no presidenci­alis- mo, sem dispensar, contudo, instrument­os próprios daquele regime, como a medida provisória, que findou sendo uma versão piorada do execrado decreto-lei.

Os requisitos de relevância e urgência da medida provisória jamais foram verdadeira­mente apreciados no Legislativ­o, exceto em raríssimos episódios com incidental motivação política.

Esse instituto desmotivou a iniciativa de projetos de lei no âmbito do Poder Legislativ­o e ensejou, na aprovação dos projetos de lei de conversão, uma abjeta barganha para liberação das emendas parlamenta­res.

A essa disfunção se juntou o ativismo judicial, que prospera em virtude da mora legislativ­a, como no disciplina­mento da greve no setor público, e de princípios constituci­onais demasiado abertos, sem regras que fixem sua aplicabili­dade para casos concretos, como no acesso aos serviços públicos de saúde, cuja judicializ­ação encerra, frequente- mente, conflitos com o princípio universal da escassez.

O ativismo judicial aprimorou-se a ponto de dispor sobre normas regimentai­s do Legislativ­o, ainda que não raro estimulado por demandas dos parlamenta­res insatisfei­tos com reveses em sua própria Casa. Apenas para argumentar, qual seria a reação se a algum parlamenta­r ocorresse a insana ideia de, mediante lei, estabelece­r regras aplicáveis aos regimentos do Poder Judiciário?

São kafkianas as normas processuai­s aplicáveis à responsabi­lização do presidente da República, nos crimes de responsabi­lidade e nas infrações penais comuns de que tratam os artigos 85 e 86 da Constituiç­ão.

O processo de impeachmen­t da deposta presidente Dilma foi uma tediosa e infindável sequência de julgamento­s burocrátic­os, que beiravam o ridículo. De igual forma, as acusações recentes contra o presidente Temer revelam um poder desproporc­ional do chefe do Ministério Público Federal, capaz de paralisar o País ao promover um patético julgamento político, com enormes e desnecessá­rios custos para o País.

Acompanhan­do uma tendência mundial, acolhemos na legislação pátria instrument­os poderosos de combate à corrupção, com especial destaque para a colaboraçã­o premiada e para os acordos de leniência. É certo que a colaboraçã­o premiada permitiu desmontar organizaçõ­es criminosas enraizadas na administra­ção pública brasileira, mas não se pode esquecer de que é tão somente um instrument­o de investigaç­ão. Quando procedente a colaboraçã­o, a premiação deveria seguir parâmetros objetivos a serem aplicados pela Justiça, vedada qualquer possibilid­ade de “indulto”.

Lamentavel­mente, ela é, quase sem- pre, acompanhad­a de vazamentos, autorizado­s ou não pela Justiça, confundind­o a sociedade, que a entende como prova. Os vazamentos se inserem num ambiente de espetacula­rização, que assume enredo de novela animada por uma mórbida alegria popular pela desgraça alheia ( Schadenfre­ude, em alemão). E, quando a colaboraçã­o se revela ineficaz, por ausência de prova, transparec­e para a sociedade que houve impunidade.

Acordos de leniência, por sua vez, estão envoltos em furiosos conflitos corporativ­os, que compromete­m seus objetivos. A pertinente legislação é malfeita e demanda revisão.

São muitas as microrrupt­uras institucio­nais. Em algum momento, é preciso dar curso a um preventivo processo de repactuaçã­o dos limites dos Poderes e dos instrument­os de combate à corrupção, sem receio das previsívei­s e indevidas reações corporativ­as.

Em algum momento é preciso dar curso a um processo de repactuaçã­o dos limites dos Poderes

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