Pais encontram na troca de livros infantis uma forma de dividir histórias e experiências
Obras, compartilhadas em grupos de escambo em redes sociais ou em eventos presenciais, ajudam a estimular nas crianças o gosto pela leitura
“Chapeuzinho Vermelho” foi trocada pelo “Pequeno Príncipe”, que foi trocado pela “Peppa”, que foi trocada por “Marcelo, Marmelo, Martelo”. Chapeuzinho foi pra Araçatuba, o Príncipe foi para o Canadá, a Peppa teve a orelha comida pelo cachorro e Marcelo foi parar numa estante ao lado de “Zezinho, o Dono da Porquinha Preta”, que não tinha entrado no escambo.
A odisseia por trás desse troca-troca pode começar por um pequeno dono desapegado e disposto a passar adiante a história que já conhece. Pra valer a pena, é preciso haver um lucro afetivo, não importa o valor do livro ou se o autor da obra tem um “Jabuti” na prateleira.
“O difícil às vezes é ‘administrar’ os pais, que chegam querendo fazer negócio”, diver te-se Christina Martins, há 13 anos mediadora de uma brincadeira que já entrou no calendário do carioca. O Sebinho nas Canelas nasceu quando a filha dela, Carolina, tinha cinco anos. Começou bimestralmente em uma praça do Rio de Janeiro e funciona assim: cada livro trazido pela criança dá direito a uma f icha, que é trocada por outro livro.
“Sou jornalista, adoro ler, meus amigos também são jornalistas. Livro é caro, então, a gente pensou: por que não? Vamos promover trocas”, lembra Christina, hoje coordenadora do Amigos da Praça, evento que incorporou o Sebinho. Sem periodicidade f ixa, a atividade inclui também palhaço e contadores de histórias. “Fomos um dos pioneiros nisso. Hoje em dia, está todo mundo trocando tudo no Facebook.”
E é na rede social que Gláucya Perrier encontrou o canal ideal para conectar mães e pais interessados em compartilhar livros infantis. Há oito meses, a ar- tesã organizou um grupo de troca que já conta com mais de 350 perfis cadastrados. “Criei para dividir conhecimento. Via que as minhas amigas não liam tanto para os filhos delas, quis incentivar.”
Moradora de Recife, Gláucya explica que a maioria dos integrantes também vive na capital pernambucana e que, depois do contato virtual, é marcado um encontro para concretizar o escambo. Em casa, exemplares que ela lê para Brena, de três anos, acabam virando oferta. Outros se mantêm na prateleira a pedido da filha. “Leio até hoje os mesmos contos de Cecília Meireles. Isso desde que ela tinha quatro meses. As pessoas me julgavam, diziam que criança nessa idade não entende, mas hoje vejo que muito do vocabulário dela vem desse hábito.” Desde a barriga Em Enclausurado, romance do inglês Ian McEwan lançado ano passado, um feto remedia o tédio na placenta ouvindo os podcasts de filosofia e as radionovelas que a mãe costuma escutar. A narrativa fantástica não tem ecos na vida real, mas há provas científicas de que ler para o bebê na gravidez fortalece o vínculo afetivo entre pais e criança. “O nosso aparelho auditivo já está formado lá pela vigésima quinta semana. Se você lê ou canta, ele ouve. Apesar de não entender, é capaz de perceber o tom de acolhimento”, expli- ca Saul Cypel, professor de neurologia infantil da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Comitê de Especialistas e de Mobilização Social do Ministério da Saúde para o Desenvolvimento Integral da Primeira Infância.
Depois do nascimento, é como se o hábito da leitura criasse amálgamas no cérebro e as melhores condições para o desenvolvimento intelectual e dos sentidos: a audição é estimulada pela fábula contada, a visão, pelo colorido das figuras. A entonação, por sua vez, vai dando o sentido de como coisas são ditas. “É a máquina cerebral trabalhando de forma integrada. Quando você lê, a criança entende que aquela história veio do livro e que também é possível escrever a sua. Isso cria uma correlação importante, sobretudo, na fase que antecede a alfabetização”, diz o médico, para quem o papel impresso ainda é o maior aliado. “O iPad e a TV entregam tudo pronto. A leitura estimula o lúdico, a imaginação.”
Professora titular do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Maria Irma Hadler Coudry compartilha dessa opinião. “Entrar cedo no mundo das letras modifica a nossa memória e a nossa linguagem, as nossas vontades, o raciocínio intelectual. Quando alguém lê para uma criança, ela entende melhor o mundo em que vive, se relaciona melhor com os pais e se familiariza com os diferentes gêneros da escrita”. Maria Irma explica que o protagonismo não está apenas na palavra. Pode vir da prosódia ou das ilustrações, por exemplo. “A figura tem um sentido, convida a criança – ela própria – a construir a narrativa.” Letras de herança Com pouco mais de dois anos, Yan sabe o que vai acontecer com os três porquinhos pelas figuras que brotam na página seguinte. Já é capaz de identificar letras: “A” de árvore, “C” de cavalo. Quando se deita para dormir, tem o hábito de pedir: “Mamãe, conta essa história”, e é prontamente atendido por Yanna Tormes. Moradora de João Pessoa, a bancária ensina o filho o que aprendeu na infância. “Minha mãe dizia: quem lê escreve. Quero deixar essa herança pra ele.”
Das correntes de leitura que participava quando pequena – ela mandava pelo correio três livros para um amigo e recebia no final do mês outros três, de outro amigo – veio a inspiração para também criar um grupo de troca de livros, há um ano, no Facebook. Com cerca de 300 membros, ele recebe em média três novas solicitações de participação por dia. “Não é pela questão financeira. É por poder compartilhar, trocar experiências.”
Mas, afinal, o hábito de ler é algo que possa ser induzido? A quarta edição da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, publicada em 2016 pelo Instituto Pró-Livro, revelou que 33% dos entrevistados teve a influência de alguém. Um terço destes afirmou que a mãe ou um responsável do sexo feminino interferiu no gosto pela leitura. Em segundo lugar, vem o professor.
A notícia ruim do estudo: 17% dos pais entrevistados disseram ler com frequência, 24% às vezes e 53% nunca. “Se a gente olhar o perfil das nossas famílias, quem mais transmite esse hábito para os filhos são as pessoas de classe média e nível superior. Para a grande maioria dos brasileiros, a escola precisa suprir essa carência”, avalia a socióloga Zoara Failla, coordenadora da pesquisa. “O problema é que muitos dos nossos professores não são leitores e as bibliotecas públicas não raras vezes são inadequadas ou estão desatualizadas.” Boas ideias Nesse contexto, inf luenciar é preciso. Thiago Costa, coordenador da pós-graduação em Comunicação e Marketing Digital da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), explica que a circulação informal do livro mostra como é possível reunir conceitos como economia colaborativa, sustentabilidade, tecnologia e troca de conhecimento. Tudo junto. “O ser humano é social por essência. Parte do nosso aprendizado é trocando experiência com o outro. A tecnologia potencializou tudo isso, facilitando nosso contato. Hoje, todo mundo anda com o smartphone, não precisa ir para o computador.” Para Costa, não é só uma questão de consumo consciente. “É mais que isso. Ao compartilhar um livro, você compartilha histórias.”
Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil mostrou que a mãe ou um responsável do sexo feminino é a principal inf luência para despertar o gosto pela leitura