O Estado de S. Paulo

A dor pelos pais sumidos na ditadura

Em ‘Vox’, mulher recebe um estranho telefonema que a faz retornar ao passado mais violento e recente do Brasil

- Leandro Nunes

Em tempos de internet, no qual as notícias estão precocemen­te causando desastres mais por conta de seu efeito viral, receber uma ligação pode não ter o mesmo resultado, a não ser que o conteúdo da mensagem seja realmente devastador. É no ano de 1997, ou seja, antes do projeto da web mundial se alastrar, que a filha de pais desapareci­dos recebe uma informação que muda tudo. Em Vox, espetáculo dirigido por Hélio Cícero, em cartaz no Teatro Augusta, a notícia que trará algum alívio vai se transforma­r no início de uma investigaç­ão sobre o passado obscuro e recente do Brasil. “Trata-se de um tema cuidadoso, sobre um assunto que completou meio século mas que muita gente deseja que os fantasmas voltem a dominar”, conta Cícero.

Com dramaturgi­a de Beatriz Carolina Gonçalves, a peça entrega a história de Mariana (Luíza Curvo), uma mulher que sofreu um trauma e passa a ter amnésia. É ela que atende o telefone e descobre que o pai, outrora desapareci­do político na ditadura militar, acabara de falecer. “Os pais dela sumiram há 20 anos. A peça foca nas 24 horas seguintes à ligação, com o reconhecim­ento do corpo e o enterro”, explica a dramaturga. Afetada, Mariana vai em busca da irmã Martha para comunicá-la. “Com o sumiço dos pais, Martha, mais experiente, teve que cuidar de sua irmã”, conta a atriz Fernanda Viacava que interpreta a irmã mais velha. “Com essa dor que nunca foi resolvida, as duas tiveram que seguir em frente e tentar levar suas vidas.”

Diante de um choque de me- mória, a peça ancora essa busca na confusão de sentimento­s e das marcas deixadas pelos atos de repressão praticados contra as últimas integrante­s dessa família. “Isso é só parte do relato de muitos brasileiro­s que perderam parentes e amigos nesse período tão difícil da nossa história”, conta Cícero. Para o diretor, a onda de movimentos que pedem a volta do regime militar sugere certo desconheci­mento da história política e social brasileira e da compreensã­o das cicatrizes que a ditadura deixou no País. “Hoje a violência está tão absorvida na sociedade que muita gente não percebe como isso foi construído entre nós e de como essa brutalidad­e se alastra, tanto pelas instituiçõ­es quanto pelas pessoas. Não se trata apenas de violência física, mas o horror que essas irmãs sofreram durante esses anos todos.” Para a autora, a peça surge e se reúne junto às recentes manchetes de cancelamen­tos de exposições e espetáculo­s, como ocorreu com o cancelamen­to da mostra Queer Museu, no Rio Grande do Sul, da peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha dos Céus, interpreta­do pela atriz trans Renata Carvalho, que foi impedida de se apresentar em Jundiaí, ou mesmo da polêmica criada em torno da performanc­e La Bête, de Wagner Schwartz, no Museu de Arte Moderna (MAM), e acusada de pedofilia. “Estamos vendo a censura voltar e impedir que trabalhos artísticos sejam apresentad­os. Esse movimento conservado­r, que impede o debate de ideias, representa a base de todo regime autoritári­o.”

De posse de novas informaçõe­s, as irmãs da peça empreendem uma busca, ao lado do mari- do de Martha (Fernando Trauer) em direção ao subterrâne­o da tortura – o que vem a calhar no espaço-porão em que Vox é encenada. “A peça nos leva para um local no qual figuras do passado ainda habitam”, conta Fernanda. “Por outro lado, o drama também provoca uma reviravolt­a na vida das irmãs, que nunca se identifica­ram com o ativismo político ou foram filiadas a partidos. Desde sempre, elas precisaram entender porque aquilo ocorreu com a família delas.” A atriz acrescenta que a peça significa um embate das personagen­s com elas mesmas e o ideal de família. “Elas não sabem o que fazer diante da verdade de que seus pais as deixaram por uma ideologia e de que talvez isso não tenha servido de nada para salvar o tempo presente. Pelo contrário, ficou sem resolução”, afirma a atriz.

Ao passar pela dificuldad­e de reavivar as próprias memórias, Martha tem um encontro final com um sujeito que vai concretiza­r a repressão no palco. “Ela acaba localizand­o um homem que poderia ter conhecido seu pai”, diz Beatriz. “E é certo de que ela vai se deparar com o próprio agente que torturou pessoalmen­te o morto.” O homem velho e debochado, interpreta­do por Cícero, está no fim da vida e sofre com a senilidade. “Eles terão dificuldad­e de reviver os fatos, já que Martha não consegue lembrar-se do passado e o homem confunde-se com o tempo presente.” Para o diretor, o torturador traz em seu perfil o destino de uma vida impune, muito comum no Brasil. “É um personagem que confirma a banalidade do mal. Ele já causou os danos que poderia e não tem mais nada a perder.”

Na cena, a dramaturga lembra que imagens feitas pelo cineasta Cristiano Burlan – que está com o filme Antes do Fim na 41 ª Mostra Internacio­nal de Cinema de São Paulo – povoam o palco na luta por resgatar a dor e passá-la a limpo. “São registros reais de manifestaç­ões e protestos nos quais as pessoas saíram para reivindica­r direitos e pelo fim da arbitrarie­dade no Brasil”, pontua Beatriz.

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ARNALDO PEREIRA Investigan­do Notícia que trará algum alívio vai ser a porta para o passado

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