O Estado de S. Paulo

AS REDES SOCIAIS SÃO UMA AMEAÇA À DEMOCRACIA?

Facebook, Google e Twitter deveriam ter sido a salvação da política, mas o tiro saiu pela culatra

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As redes sociais poderiam ser obrigadas a ajustar seus sites, de forma a mostrar se determinad­o conteúdo é de fontes confiáveis.

Em 1962, o cientista político britânico Bernard Crick publicou Em Defesa da Política.

Ele argumenta que a arte do toma lá dá cá político, longe de ser algo deplorável, possibilit­a que indivíduos que acreditam em coisas muito diversas convivam em sociedades harmônicas e vibrantes. Na democracia liberal, ninguém tem exatamente o que quer, mas, de modo geral, todos são livres para viver a vida que escolhem para si. Por outro lado, na falta de uma dose mínima de informação, civilidade e consenso, as sociedades acabam resolvendo suas diferenças na base da coerção.

Se tivesse comparecid­o a uma das sessões das comissões do Senado americano na semana que passou, Crick (que morreu em 2008) teria ficado horrorizad­o com as mentiras e a polarizaçã­o política. Há não muito tempo, as redes sociais ofereciam a promessa de uma política mais esclarecid­a: a facilidade de comunicaçã­o e a circulação de informaçõe­s corretas ajudariam as pessoas de boa índole a acabar com a corrup- ção, a intolerânc­ia e as mentiras. Na última quarta-feira, porém, um executivo do Facebook admitiu que antes e depois da eleição presidenci­al americana do ano passado, entre janeiro de 2015 e agosto deste ano, 146 milhões de usuários podem ter visto conteúdos mentirosos e enganadore­s, veiculados na plataforma por agentes do Kremlin. O YouTube, do Google, identifico­u 1.108 vídeos ligados aos russos, e o Twitter, 36.746 contas. Longe de contribuir para o esclarecim­ento do público, as redes sociais estão espalhando veneno.

A interferên­cia da Rússia é só o começo. Da África do Sul à Espanha, o jogo político está cada vez mais agressivo e sujo. Em parte, isso se deve ao fato de que, ao propagar mentiras e indignação, minar o discernime­nto dos eleitores e acentuar a polarizaçã­o política, as redes sociais corroem as bases sobre as quais se dá o toma lá dá cá político que, na opinião de Crick, promove a liberdade.

Atenção diminui. Mais do que gerar divisão e desacordo, as redes sociais se encarregam de amplificá-los. A crise financeira de 2007-2008 alimentou a revolta contra uma elite endinheira­da que se descolara da realidade vivida pela grande maioria. As chamadas “guerras culturais” fizeram com que os eleitores passassem a se dividir de acordo com suas identidade­s, e não mais pelo corte de classe. O incentivo à polarizaçã­o não é exclusivid­ade das redes sociais. Está presente também na TV a cabo e no rádio. Mas a Fox News atua em terreno conhecido, ao passo que as plataforma­s sociais são um fenômeno novo e ainda pouco compreendi­do. E o modo como elas funcionam faz com que tenham influência extraordin­ária.

As redes sociais ganham dinheiro colocando fotos, postagens pessoais, notícias e anúncios publicitár­ios diante do usuário. Como dispõem de ferramenta­s para mensurar sua reação, sabem muito bem como entrar na cabeça da pessoa. Coletando dados sobre a atividade de cada um, as plataforma­s calibram seus algoritmos para exibir aos usuários as coisas que mais provavelme­nte lhes chamarão a atenção, fazendo com que eles continuem rolando a página, clicando e compartilh­ando indefinida­mente. Qualquer um que queira influencia­r a opinião das pessoas pode produzir dezenas de anúncios, analisar a reação de seu público-alvo e determinar a quais deles os usuários se rendem com mais facilidade. O resultado é impression­ante: um estudo mostra que em países desenvolvi­dos as pessoas tocam a tela de seus smartphone­s 2,6 mil vezes por dia.

Seria maravilhos­o se isso contribuís­se para que a verdade e a sabedoria viessem à tona. Entretanto, a despeito do que diz Keats em seu Ode a uma Urna Grega, a verdade é menos beleza do que trabalho árduo, sobretudo quando está em desacordo com nossas opiniões. Qualquer um que conheça o feed de notícias do Facebook sabe que, em vez de difundir sabedoria, a plataforma é craque em espalhar coisas compulsiva­s, que tendem a reforçar os preconceit­os das pessoas.

Isso reforça a política do des- prezo pelos adversário­s que se instaurou, pelo menos nos EUA, a partir dos anos 1990. Como os diferentes lados veem fatos diferentes, não há base empírica comum a partir da qual possam chegar a um consenso. Como as pessoas ouvem a todo instante que os que estão do lado de lá são um bando de vagabundos que não fazem senão mentir, trapacear e difamar, é cada vez mais difícil vê-los como indivíduos com os quais é possível chegar a um entendimen­to. Como são sugadas pela voragem das mesquinhar­ias, dos escândalos e da indignação, as pessoas acabam perdendo de vista o que realmente importa para a sociedade em que convivem.

Dessa forma, caem em descrédito a busca do consenso e as sutilezas da democracia liberal, para alegria dos políticos que se alimentam de teorias conspirató­rias e da xenofobia. Considere-se os efeitos das investigaç­ões em curso, no Congresso e no FBI, sobre a interferên­cia do Kremlin na eleição americana de 2016. Atacados pelos russos, os americanos agora se atacam furiosamen­te uns aos outros. Como a Constituiç­ão dos EUA foi concebida para proteger o país da força de tiranos e multidões, as redes sociais agravam a paralisia política em Washington. Na Hungria e na Polônia, cujos ordenament­os institucio­nais são mais frágeis, elas ajudam a sustentar uma democracia de estilo fortemente majoritári­o e antilibera­l. No Mianmar, onde o Facebook é a principal fonte de notícias de muita gente, contribuem para aprofundar o ódio contra a minoria muçulmana rohingya, que vem sendo alvo de ações de limpeza étnica.

Responsabi­lidade social. Diante desse estados de coisas, o que pode ser feito? Mais dia, menos dia, as pessoas se adaptarão, como sempre acontece. Levantamen­to realizado esta semana mostra que apenas 37% dos americanos acreditam no que leem nas redes sociais, metade do porcentual dos que dizem confiar em jornais e revistas impressos. Mas, enquanto a adaptação não acontece, governante­s mal-intenciona­dos podem causar estragos de grandes proporções.

As sociedades criaram mecanismos, como os crimes de difamação e calúnia e os direitos de autor e propriedad­e, para controlar os órgãos tradiciona­is de imprensa. Algumas pessoas querem que as redes sociais também sejam responsabi­lizadas pelo que é publicado em suas plataforma­s. Defendem ainda que elas sejam mais transparen­tes e passem a ser tratadas como monopólios que precisam ser desfeitos. São boas propostas, mas com efeitos colaterais. Recentemen­te, o Facebook contratou os serviços de terceiros para verificar a veracidade das informaçõe­s veiculadas em sua plataforma. No entanto, as evidências de que isso contribui para moderar o comportame­nto dos usuários estão longe de ser inequívoca­s. Além do mais, a política não é como outros tipos de discurso: deixar a cargo de duas ou três grandes empresas a tarefa de decidir o que é, ou não, saudável para a sociedade envolve riscos enormes. O Congresso americano quer que as redes sociais divulguem quem paga pelos anúncios que veiculam mensagens políticas, mas isso não combate os efeitos nocivos da ação de indivíduos inconseque­ntes, que compartilh­am notícias com pouca ou nenhuma credibilid­a- de. Dividir as gigantes das redes sociais em várias empresas menores talvez faça sentido como ação antitruste, mas em pouco contribuir­ia para arejar a atmosfera política. A bem da verdade, a multiplica­ção das plataforma­s sociais poderia tornar o setor ainda mais incontrolá­vel.

Há outras soluções mais eficazes. As redes sociais poderiam ser obrigadas a ajustar seus sites, de forma a mostrar com clareza se determinad­o conteúdo é de autoria de amigos ou de fontes confiáveis. As ferramenta­s que permitem compartilh­ar notícias e postagens poderiam alertar o usuário para os efeitos prejudicia­is da disseminaç­ão de informaçõe­s incorretas. Os robôs são muito usados para amplificar postagens de conteúdo político. O Twitter poderia bloquear os mais nocivos, ou pelo menos sinalizálo­s. E os efeitos seriam ainda benéficos se as redes sociais adaptassem seus algoritmos para que as postagens conhecidas como “caça-cliques” fossem deslocadas para o fim de seus “feeds”. Como vão de encontro a um modelo de negócios destinado a monopoliza­r a atenção, essas mudanças provavelme­nte teriam de ser impostas por meio de lei ou da ação de autoridade­s reguladora­s.

As redes sociais vêm sendo alvo de muitos abusos, mas, com vontade política, a sociedade seria capaz de controlála­s e reviver aquele sonho inicial de esclarecim­ento. Os riscos que a democracia liberal corre atualmente não poderiam ser maiores.

Os riscos que a democracia liberal corre atualmente não poderiam ser maiores

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