A arte polêmica quase sempre desafia tabus sexuais.
“Há sempre um copo de mar para um homem navegar.” O verso do poema de Jorge de Lima servia de tema à 29ª edição Bienal de Artes de SP. Era o ano de 2010. Nada ainda de Petrolão. Lava jato era onde lavávamos o carro. A democracia seguia seu rumo pacificamente. As instituições, preservadas.
Com “a diretoria comprometida com a renovação institucional”, a Bienal anunciou um “projeto educativo permanente” e uma ampla programação paralela, privilegiando “obras de cunho político”.
A curadoria de Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos destinou cerca de 400 atividades a seis espaços conceituais intitulados Terreiros.
A polêmica da vez ficou por conta da instalação Bandeira Branca, de Nuno Ramos. Urubus voavam numa gaiola gigante no vão central do pavilhão, ao som do cancioneiro nacional. Absolutamente ge- nial. Dias depois de protestos de organizações protetora dos animais, tiraram os animais.
Entre os 159 artistas, Henrique Oliveira, de Ourinhos, que mora em Nova York e faz esculturas e instalações gigantes em madeira compensada e pigmentos. São formas orgânicas que lembram membros do corpo, dejetos, órgãos do abdômen e sexuais.
Uma grande instalação dele, A Origem do Terceiro Mundo, pedia a interferência do público. Entrávamos num túnel, percorríamos uma caverna de madeira e saíamos do outro lado, por uma passagem curvilínea.
Só fora da escultura, percebia-se: a saída era o órgão sexual feminino, uma vagina. Crianças faziam o percurso. Pais levavam filhos. Crianças corriam em torno da obra. Não se pensou maliciosamente naquela obra. Representava o nascer. Nascíamos. Nos davam à luz.
Repercussão negativa? Zero. Traumas? Nenhum. Pais revoltados protes- tando na entrada? Nenhum. Um juiz conservador, um promotor mal-intencionado em busca de publicidade, um ator na geladeira, um atleta que descobriu ser bacana se anunciar de direita, um blogueiro reacionário em busca de cliques e polêmica para aumentar a sua audiência, um grupo de ativistas numa página do Facebook, um grupo do “zapzap”, uma rede de ideólogos com seus semelhantes de militância de teclado, o ativismo de sofá, protestando, abaixo-assinado, petição online, nos dias de hoje, protestariam contra aquela... Pouca vergonha?
O protesto insano, cego, raivoso, ainda não se alimentava da descrença, da crise ética e de representatividade brasileira, que questiona até o direito mais sagrado de uma democracia, a liberdade de expressão.
Não tinha um governo questionado, uma presidência com os piores índices de aprovação, uma esquerda expelida do Poder pega com a mão na massa podre da corrupção pública e privada, um ministro da Cultura, interventor temporário, por vezes rancoroso, aliado à bancada evangélica criticando artistas, a arte, o livre pensar.
Para os visitantes de 2010, estávamos num ambiente de provocação, verticalidade do pensamento, interpretação da realidade. Quem se mobilizou e levou a família ao pavilhão do Ibirapuera, sabia que o conforto estava em casa com o controle remoto na mão e a família no sofá, não numa Bienal de Artes.
Sabia que iria sair de lá um cidadão instigado. Acima de tudo, um cidadão com direito de ser questionado e provocado.
O visitante era sugerido a refazer o caminho da obra. O túnel então atravessava ovários, trompas e um grande útero. O afunilamento, a vagina. Por fim, nascíamos.
Me fotografei nascendo. Me fotografei e bloguei em êxtase por respirar e viver. Ninguém pensou ardilosamente naquele gesto. Nem passou pela minha cabeça outra interpretação.
Vi os dois partos dos meus filhos. Vi de perto suas cabecinhas aparecerem. Participei do que é definido como “parto humanitário”. Um paradoxo, pois então existe o parto desumano, o da interferência cirúrgica desnecessária, um triste recorde brasileiro, fruto de um mundo industrializado, em que o tempo é precioso; a maioria das cesáreas é agendada aos sábados, para pais e famílias em folga não serem prejudicados no trabalho; sábado de manhã, antes da feijoada; não domingo, em que tem rodada do cam- peonato pela TV.
Um parto humanizado é um parto como antigamente. Numa emergência clínica, então, sim, a cesárea procede. Para a Organização Mundial de Saúde, o índice razoável de cesáreas é de 15% dos nascimentos. No Brasil, 43% dos partos são por cesárea. Na rede particular, 80%.
Logo, logo, robôs os farão. O olhar a um corpo nu perde a referência primordial, a de que somos mamíferos, animais sexuais que procriam, temos placenta, até tetas, e ganha malícia. Um artista nu vira um homem pelado que ofende a moral. A nudez feminina vira perniciosa, não beleza, não maternal. Até dar de mamar em público vira tabu.
O novo filme de Carol Jabor, Aos Teus Olhos, parte do princípio de que o olhar pode ser deturpado. Um pai que vê atentamente o professor de natação do filho em ação, enxerga, em cada gesto, carinho, ajuda, como amarrar o calção da criança, rituais de uma aula ou, dependendo da sua paranoia, um pedófilo em ação.
A arte polêmica quase sempre desafia tabus sexuais. O olhar para a obra é subjetivo. Por isso, a censura num estado democrática deve ser rigorosamente proibida. Na verdade, depois de 1988, ela foi. Só que não.
A arte polêmica quase sempre desafia tabus sexuais. O olhar para a obra é subjetivo