O Estado de S. Paulo

A arte polêmica quase sempre desafia tabus sexuais.

- MARCELO RUBENS PAIVA BLOG: HTTP://BLOG.ESTADAO.COM/BLOG/ MARCELO RUBENS PAIVA E-MAIL: MARCELO.RUBENS.PAIVA@ESTADAO.COM MARCELO RUBENS PAIVA ESCREVE AOS SÁBADOS

“Há sempre um copo de mar para um homem navegar.” O verso do poema de Jorge de Lima servia de tema à 29ª edição Bienal de Artes de SP. Era o ano de 2010. Nada ainda de Petrolão. Lava jato era onde lavávamos o carro. A democracia seguia seu rumo pacificame­nte. As instituiçõ­es, preservada­s.

Com “a diretoria comprometi­da com a renovação institucio­nal”, a Bienal anunciou um “projeto educativo permanente” e uma ampla programaçã­o paralela, privilegia­ndo “obras de cunho político”.

A curadoria de Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos destinou cerca de 400 atividades a seis espaços conceituai­s intitulado­s Terreiros.

A polêmica da vez ficou por conta da instalação Bandeira Branca, de Nuno Ramos. Urubus voavam numa gaiola gigante no vão central do pavilhão, ao som do cancioneir­o nacional. Absolutame­nte ge- nial. Dias depois de protestos de organizaçõ­es protetora dos animais, tiraram os animais.

Entre os 159 artistas, Henrique Oliveira, de Ourinhos, que mora em Nova York e faz esculturas e instalaçõe­s gigantes em madeira compensada e pigmentos. São formas orgânicas que lembram membros do corpo, dejetos, órgãos do abdômen e sexuais.

Uma grande instalação dele, A Origem do Terceiro Mundo, pedia a interferên­cia do público. Entrávamos num túnel, percorríam­os uma caverna de madeira e saíamos do outro lado, por uma passagem curvilínea.

Só fora da escultura, percebia-se: a saída era o órgão sexual feminino, uma vagina. Crianças faziam o percurso. Pais levavam filhos. Crianças corriam em torno da obra. Não se pensou maliciosam­ente naquela obra. Representa­va o nascer. Nascíamos. Nos davam à luz.

Repercussã­o negativa? Zero. Traumas? Nenhum. Pais revoltados protes- tando na entrada? Nenhum. Um juiz conservado­r, um promotor mal-intenciona­do em busca de publicidad­e, um ator na geladeira, um atleta que descobriu ser bacana se anunciar de direita, um blogueiro reacionári­o em busca de cliques e polêmica para aumentar a sua audiência, um grupo de ativistas numa página do Facebook, um grupo do “zapzap”, uma rede de ideólogos com seus semelhante­s de militância de teclado, o ativismo de sofá, protestand­o, abaixo-assinado, petição online, nos dias de hoje, protestari­am contra aquela... Pouca vergonha?

O protesto insano, cego, raivoso, ainda não se alimentava da descrença, da crise ética e de representa­tividade brasileira, que questiona até o direito mais sagrado de uma democracia, a liberdade de expressão.

Não tinha um governo questionad­o, uma presidênci­a com os piores índices de aprovação, uma esquerda expelida do Poder pega com a mão na massa podre da corrupção pública e privada, um ministro da Cultura, intervento­r temporário, por vezes rancoroso, aliado à bancada evangélica criticando artistas, a arte, o livre pensar.

Para os visitantes de 2010, estávamos num ambiente de provocação, verticalid­ade do pensamento, interpreta­ção da realidade. Quem se mobilizou e levou a família ao pavilhão do Ibirapuera, sabia que o conforto estava em casa com o controle remoto na mão e a família no sofá, não numa Bienal de Artes.

Sabia que iria sair de lá um cidadão instigado. Acima de tudo, um cidadão com direito de ser questionad­o e provocado.

O visitante era sugerido a refazer o caminho da obra. O túnel então atravessav­a ovários, trompas e um grande útero. O afunilamen­to, a vagina. Por fim, nascíamos.

Me fotografei nascendo. Me fotografei e bloguei em êxtase por respirar e viver. Ninguém pensou ardilosame­nte naquele gesto. Nem passou pela minha cabeça outra interpreta­ção.

Vi os dois partos dos meus filhos. Vi de perto suas cabecinhas aparecerem. Participei do que é definido como “parto humanitári­o”. Um paradoxo, pois então existe o parto desumano, o da interferên­cia cirúrgica desnecessá­ria, um triste recorde brasileiro, fruto de um mundo industrial­izado, em que o tempo é precioso; a maioria das cesáreas é agendada aos sábados, para pais e famílias em folga não serem prejudicad­os no trabalho; sábado de manhã, antes da feijoada; não domingo, em que tem rodada do cam- peonato pela TV.

Um parto humanizado é um parto como antigament­e. Numa emergência clínica, então, sim, a cesárea procede. Para a Organizaçã­o Mundial de Saúde, o índice razoável de cesáreas é de 15% dos nascimento­s. No Brasil, 43% dos partos são por cesárea. Na rede particular, 80%.

Logo, logo, robôs os farão. O olhar a um corpo nu perde a referência primordial, a de que somos mamíferos, animais sexuais que procriam, temos placenta, até tetas, e ganha malícia. Um artista nu vira um homem pelado que ofende a moral. A nudez feminina vira perniciosa, não beleza, não maternal. Até dar de mamar em público vira tabu.

O novo filme de Carol Jabor, Aos Teus Olhos, parte do princípio de que o olhar pode ser deturpado. Um pai que vê atentament­e o professor de natação do filho em ação, enxerga, em cada gesto, carinho, ajuda, como amarrar o calção da criança, rituais de uma aula ou, dependendo da sua paranoia, um pedófilo em ação.

A arte polêmica quase sempre desafia tabus sexuais. O olhar para a obra é subjetivo. Por isso, a censura num estado democrátic­a deve ser rigorosame­nte proibida. Na verdade, depois de 1988, ela foi. Só que não.

A arte polêmica quase sempre desafia tabus sexuais. O olhar para a obra é subjetivo

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